Por Cristiano Carvalho e Gabriela Cabral Pires
“Tributem os investimentos no exterior!”, eles disseram. No afã de dar respostas imediatas a cobranças populares para manter alguma responsabilidade fiscal e um mínimo de sanidade nas contas públicas, frente a gastos governamentais muito acima da arrecadação, veio do Executivo Federal a Medida Provisória 1171/23, em 30 de abril de 2023, cuja redação fora posteriormente incorporada à da MP 1172/23, de 1º de maio.
A norma, contudo, já nascia com graves problemas, a começar pelo veículo ser uma medida provisória, cujos pressupostos são a relevância e urgência, e pela incorporação do texto em outra MP no claro intuito de evitar a caducidade na demora da análise pelo Legislativo. Diante da probabilidade de um grande contencioso acerca da ausência de adequação dos veículos normativos adotados, associada a acordos entre as lideranças partidárias e o Poder Executivo, no último dia 23 o texto da MP 1171 foi retirado do projeto de lei de conversão após a votação no plenário da Câmara dos Deputados e deve voltar a tramitar no formato de projeto de lei de iniciativa do Executivo.
Para além dos quesitos formais, a incorporação ao direito brasileiro do instituto do trust sem o devido debate e cuidados necessários acabará por criar um verdadeiro “trust jabuticaba”, rodeado de insegurança jurídica e que somente existe por aqui. Especialmente, é importante entender que o instituto existe em sistemas jurídicos distintos do brasileiro, até porque não há no Brasil a divisão da propriedade entre formal (legal title) e econômica (equitable title) como ocorre nos países de common law, onde o instituto foi criado. Na medida em que as normas tributárias se utilizam das figuras jurídicas do direito civil para estabelecer as hipóteses de incidência e como algumas das relações criadas no trust não existem em nosso ordenamento, o assunto gera controvérsia em diversos pontos.
Ainda assim, a legislação pátria reconhecia, mesmo antes da edição da MP, a existência de trusts no exterior, inclusive aqueles criados por residentes fiscais no Brasil, com bens originados daqui. Interessa-nos, portanto, o fato de que o contrato de trust celebrado no exterior por uma pessoa residente fiscal no Brasil pode ter implicações civis e tributárias aqui, de forma que três momentos devem ser considerados para fins de análise da incidência tributária:
· (a) No primeiro momento, o instituidor (settlor) constitui o trust e entrega os seus bens, que passam a compor o fundo sob os cuidados do administrador (trustee) em prol dos beneficiários. Neste momento, ele pratica um ato em vida, declarando unilateralmente sua vontade. Considerando que o ITCMD (imposto estadual sobre doações e heranças) também pode incidir sobre transmissões que ocorrem por atos em vida, como é o caso das doações, é importante avaliar as características do contrato de constituição do trust para verificar a incidência ou não do imposto estadual.
Questiona-se, então, em qual momento a propriedade dos bens deixa de ser do instituidor, para quem ela se destina e sob quais efeitos. O conceito de doação no Código Civil não se limita à liberalidade, mas há o elemento de transferência de bens do patrimônio de uma pessoa para o patrimônio de outra[1]. O momento da constituição de um trust, portanto, não é exatamente análogo a uma doação, pois nesse instituto, o “título jurídico de propriedade do bem é transferido pelo proprietário (settlor) a um fiduciário (trustee), mas os benefícios advindos da propriedade são transferidos para outra pessoa, o beneficiary”[2].
Dada a atipicidade do contrato, o trust ainda pode ter a característica de revogável ou irrevogável pelo instituidor, fato que demonstra ainda haver poder do settlor sobre os bens enquanto houver a possibilidade de se revogar o trust. Noutra mão, o trust pode ser classificado como discricionário, o que significa que o trustee terá poderes bem mais amplos, tais como de incluir beneficiários ou definir quando e como eles receberão benefícios.
Daí surgem as perguntas: como o trust não tem personalidade jurídica independente, há transferência do bem ao trustee ou ao beneficiário quando da sua constituição? Trata-se, pois, a sua constituição de hipótese de incidência do ITCMD?
Segundo as regras previstas nas MPs em questão e que devem constar do projeto de lei, os bens e direitos objeto de trust no exterior serão considerados como permanecendo sob titularidade do instituidor após a criação do trust, exceto se o instituidor abdicar, em caráter irrevogável, da sua parcela do patrimônio do trust, pois nesse caso a transmissão será considerada ocorrida no momento da criação do trust.
A propriedade apenas passaria à titularidade do beneficiário, de acordo com a MP, no momento da (i) distribuição dos bens pelo trust para o beneficiário, (ii) classificação do trust como irrevogável ou (iii) do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro, quando, então, incidirá o ITCMD.
Ou seja, trata-se de uma desconsideração do próprio instituto jurídico, criando-se uma espécie de ficção jurídica que viola o artigo 110 do Código Tributário Nacional[3]. Ora, mesmo que o direito brasileiro não contenha o instituto do trust, nem por isso pode a norma tributária criar incidências desconsiderando uma figura sedimentada do direito privado, mesmo que estrangeiro. Das duas uma: ou estará ignorando um instituto sedimentado em outras jurisdições, ou estará criando uma incidência tributária sobre direito privado inexistente no país. Qualquer das alternativas é vedada.
· b) O segundo momento consiste no auferimento de receitas pelo trust em virtude da exploração dos bens que o integram. Partindo da premissa de que trust não tem personalidade jurídica independente, a MP determinava que os bens e direitos objeto do trust, independentemente da data da sua aquisição, deveriam ser declarados diretamente pelo titular na DAA, pelo custo de aquisição. Além disso, os rendimentos e ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto do trust seriam considerados auferidos pelo titular de tais bens e direitos, em regra o instituidor, na respectiva data e estariam sujeitos à tributação prevista por nossa legislação independentemente de aqui ingressarem.
Além disso, caso o trust detenha sociedade controlada no exterior, ela será considerada como detida diretamente pelo titular dos bens e direitos do trust, ou seja, haverá a tributação sobre os lucros da controlada com base nas regras estabelecidas pela própria MP e, agora, pela lei, para essa situação.
· c) Por fim, considera-se o terceiro momento aquele em que ocorre o recebimento, pelo beneficiário, dos valores oriundos do trust. Antes mesmo da edição da medida provisória em análise, a Receita Federal já havia se manifestado no sentido de que esses rendimentos se sujeitam à tributação pelo Imposto de Renda da Pessoa Física.
A MP ratificou o entendimento, embora tal determinação soe ilegal, para não dizer inconstitucional. Isso porque o conceito de renda pressupõe rendimento pago em decorrência de relação jurídica do recebedor com fonte patrimonial que lhe pertença, como fruto de seu trabalho ou prestação de serviço. Na ausência de contrapartida do beneficiário em relação ao valor recebido do trust, a relação é unilateral e seria passível de incidência do ITCMD, como já entenderam alguns estados no passado.
Uma vez que se admite no Brasil a eficácia de contratos atípicos celebrados no exterior, não pode o Brasil fechar os olhos às características desses contratos e seus efeitos jurídicos próprios e muito menos criar um instituto “frankenstein”, mesclando aspectos próprios de contratos típicos brasileiros no intuito de alcançar a arrecadação tributária pretendida, sem observar fundamentos básicos do nosso sistema tributário. Eis um desafio a ser enfrentado e, talvez, o projeto de lei venha a minimizar as irregularidades contidas na redação da medida provisória.
[1] Código Civil Brasileiro, artigo 538:”Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”
[2] CARVALHO, Cristiano. DEFFENTI, Fabiano. Os trusts e o planejamento tributário. In.: Revista Tributária das Américas. 2010. Pg. 153.
[3] Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Fonte: Jota