Por Yuri Fernandes
Com o advento da Lei nº 14.230/21, equivocadamente designada como a Nova Lei de Improbidade Administrativa, operou-se uma profunda reforma da Lei nº 8.429/92 e de praticamente todo o sistema de responsabilização de agentes públicos inábeis ou potencialmente corruptos.
Editada por força do preceito constitucional previsto no artigo 37, §4º da CRFB/88, onde, ao traçar parâmetros gerais, estipulou-se como possíveis penalidades: a suspensão de direitos políticos; a perda da função pública; o ressarcimento ao erário; e a indisponibilidade de bens, sendo esta última objeto do estudo.
As recentes alterações guardam estrita relação com a reforma da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), por intermédio da Lei nº 12.376/10, onde criou um ambiente de maior segurança para o administrador público que, embora bem intencionado, se submete a possíveis erros em sua busca pela inovação com a gestão pública, atendendo às ideias de eficiência e especialização técnica.
Diante de todo o cenário estabelecido pelo direito administrativo do medo, onde inevitavelmente o gestor público, paralisado diante dos excessos cometidos pelos órgãos de controle (interno e externo), deixa de avançar com políticas públicas essenciais, causando severos danos à população, em uma anomalia popularmente conhecida como “apagão das canetas“.
Justamente com a finalidade de conferir maior segurança ao administrador público que o originário Projeto de Lei nº 10.887/2018, que ensejou a reforma da LIA, estabeleceu em sua justificativa.
bastante significativa é a supressão do ato de improbidade praticado mediante culpa;
não é dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia;
tais situações não deixam de poder se caracterizar como ilícitos administrativos que se submetem a sanção daquela natureza e, caso haja danos ao erário, às consequências da lei civil quanto ao ressarcimento;
tais atos desbordam do conceito de improbidade administrativa e não devem ser fundamento de fato para sanções com base neste diploma e nem devem se submeter à simbologia da improbidade, atribuída exclusivamente a atos dolosamente praticados;
inúmeras alegações de improbidade são impingidas a agentes públicos e provados que praticam atos protegidos por interpretações razoáveis, quer na doutrina, quer do próprio Poder Judiciário;
e não são incomuns ações civis públicas por atos de improbidade administrativa ajuizadas em razão de o autor legitimado possuir uma interpretação acerca de princípios e regras destoantes da jurisprudência dominante ou em desconformidade com outra interpretação igualmente razoável, quer seja dos setores de controles internos da administração, quer dos tribunais de contas.
Por conta do cenário de inovação jurídica, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade da nova legislação com o Tema Repetitivo nº 1.199 (Leading case ARE n.º 843989), fixando a seguinte tese:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se — nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA — a presença do elemento subjetivo — DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o Juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
Com isto, especialmente através do item 3 da tese fixada, o STF definiu que a reforma da LIA se aplica às ações civis públicas em curso, desde que não haja seu trânsito em julgado, em garantia da teoria do isolamento dos atos processuais e ao previsto no artigo 14 do CPC/15.
Indisponibilidade de bens
Pois bem. Diante de tantas inovações, não houve desprezo ao tema correlato à indisponibilidade de bens.
A LIA, em sua redação originária, teve dois momentos de aplicação sob a ótica processual: o primeiro deles sob a égide da Lei nº 5.869/73 — CPC/73; e o atual de acordo com as normas da Lei nº 13.105/15 — CPC/15.
Sob o pálio do CPC/73, a indisponibilidade dependia da demonstração da “fumaça do bom direito“ (com a demonstração de que o direito de quem pleiteia a cautelar é provável)) e do “perigo da demora“ (delimitando-se que o indeferimento da cautelar colocaria em risco o resultado da pretensão principal).
Já com o CPC/15, o deferimento de cautelares passou a possuir como requisitos a “probabilidade do direito“ e o “perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo“.
Entretanto, a redação originária da LIA (artigo 7º, §Ú), no curso do CPC/73, elencava como requisitos a “lesão ao patrimônio público” ou o “enriquecimento ilícito”, deixando de dispor sobre o elemento do “perigo da demora”.
Em virtude da omissão normativa, ao não dispor sobre o “perigo da demora“, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou o Tema Repetitivo nº 701, oportunidade em que fixou a seguinte tese: “É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em ação civil pública por ato de improbidade administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro”.
Desse modo, seria possível o deferimento de cautelar de indisponibilidade de bens fundada tão somente na “probabilidade do direito“, com a pura e simples demonstração da “lesão ao patrimônio público” ou do “enriquecimento ilícito“, sem qualquer comprovação do “perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo“, notadamente através da prática de atos (ou sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro.
Com a reforma da LIA, seu artigo 7º, §Ú foi revogado e o artigo 16, §3º passou a tratar do tema, dispondo que “o pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em cinco dias”.
Demonstração de perigo de dano
Nota-se que o legislador passou a exigir como requisitos a demonstração de “perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo”.
Acompanhando a evolução normativa, o STJ, com o julgamento do Leading case AREsp 2.272.508-RN, julgado em 06/02/2024 (INFO 800 de 20/02/2024), de relatoria do ministro Gurgel de Faria, deixou de entender que a indisponibilidade de bens na ação de improbidade não necessita da demonstração do perigo da demora, em uma superação jurisprudencial do Tema Repetitivo nº 701.
Com o acórdão, foram traçados os seguintes apontamentos:
a discussão trazida a esta corte versa a respeito da presença, ou não, dos requisitos para a concessão da medida cautelar de indisponibilidade de bens no bojo de ação de improbidade administrativa;
a nova redação da Lei nº 8.429/1992, dada pela Lei nº 14.230/2021, passou a exigir a demonstração do requisito da urgência, além da plausibilidade do direito invocado, para o deferimento da indisponibilidade de bens em sede de ação de improbidade administrativa;
por possuir natureza de tutela provisória de urgência cautelar, podendo ser revogada ou modificada a qualquer tempo, a decisão de indisponibilidade de bens reveste-se de caráter processual, de modo que, por força do artigo 14 do CPC/2015, a norma mencionada deve ter aplicação imediata ao processo em curso;
e no caso, o acórdão impugnado, a despeito de ter sido prolatado anteriormente à edição do novo diploma legal, consignou a necessidade da demonstração do requisito da urgência, na linha adotada pela Lei nº 14.230/2021.
O tema possui especial relevância, principalmente diante de ações civis públicas ajuizadas de maneira frívola, sem que o legitimado ativo tivesse se aprofundado pela busca de elementos hábeis a compor a justa causa para o oferecimento da ação.
Se não bastasse a distribuição do ônus da prova promovida pelo CPC/15 (artigo 373, I), onde determina que o autor é responsável por provar fato constitutivo de seu direito, ocorre que os legitimados ativos (Ministério Público e Fazendas Públicas) para a propositura da ACPIA gozam da prerrogativa do poder de requisição, bastando, para isso, a simples expedição de um ofício para que se obtenha determinada prova.
Assim, principalmente diante da utilização da ACPIA como mecanismo de destruição política (lawfare) e dos incipientes inquéritos civis que diariamente originam novas ações, não é cautela demasiada que o julgador exija, no ato da apreciação do pedido de indisponibilidade de bens, a inequívoca demonstração de todos os seus requisitos, essencialmente com a caracterização do “perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo“, ou seja, com a comprovada prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro, de forma contemporânea aos fatos aduzidos com a petição inicial.
Bibliografia
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Fonte: Conjur