Por Marcelo Kokke
Quando a MP 899/19, convertida na Lei 13.988/20, regulamentou a transação tributária no âmbito federal, iniciou-se verdadeira revolução na relação entre fisco e contribuinte. Por anos, preocupações impediram que representantes do Estado e dos contribuintes oferecessem opções recíprocas como forma de encerrar litígios. Antes da MP, havia indisponibilidade de crédito e medo de favoritismo, além de outras obstruções durante as negociações.
Após mais de três anos, a transação se tornou um benchmark de sucesso, sendo replicada em vários entes federativos, como o Estado de São Paulo e o Município do Rio de Janeiro. Além da reestruturação do velho instrumento do parcelamento, que permite a renúncia tributária indiscriminada, o sucesso também se deve à elevada confiança que órgãos de controle e sociedade civil passaram a depositar no instituto. Essa confiança não veio do acaso, e possui como principal fiadora a absoluta transparência que a Advocacia-Geral da União (AGU) conferiu ao instituto.
Um complexo de construções foi elaborado. Normas como a Lei nº 13.140/15 estabeleceram regras de imparcialidade e garantias para atuação na autocomposição de conflitos, o Código de Processo Civil estabeleceu deveres de lealdade, a Lei nº 9.469/97 estabeleceu padrão normativo. Normas de respeito recíproco entre os representantes são também imperativas, ao que se destaca o Estatuto da OAB.
O procurador da Fazenda Nacional nas negociações relativas a transações tributárias atua sob esse complexo de normas que protegem o contribuinte e o interesse público simultaneamente. Se houve um erro, por exemplo, na constituição do crédito, o controle de legalidade exercido pelo procurador determina que isso seja reconhecido. A transação se faz pela legalidade e respeito ao contribuinte, não se exercendo a qualquer custo para receber o crédito.
Nesse contexto, a LC nº 104/01, que alterou o CTN, afirma que não é vedada a divulgação de informações relativas a inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública.[1] Isso somente é possível porque a inscrição em dívida ativa confere presunção de certeza e liquidez ao crédito tributário, o qual não ocorre antes deste ato administrativo.[2] Enquanto o crédito tributário se encontra em fase de discussão administrativa, revestido de caráter duvidoso, o sigilo é imperativo. Combinam-se moralidade administrativa e direitos do contribuinte.
Com base na publicidade exigida, a AGU estabelece relações transparentes e republicanas na transação. Se o contribuinte quiser saber as transações efetuadas, com nome, CNPJ, tipo e situação de parcelamento, valor, juros, multa, encargo, unidade federativa, ano de concessão, basta entrar no site da PGFN.[3] Se o contribuinte quiser conhecer os termos de Negócios Jurídicos Processuais ou saber como foi o Termo de Transação Individual feito por qualquer contribuinte, seja seu concorrente ou o clube de futebol do coração, a transparência é a mesma.[4]
O contribuinte, seus concorrentes, a sociedade como um todo, estão guarnecidos por um complexo de normas que protege tanto o interesse público quanto a legalidade no exercício do ato. O procurador atua com níveis de responsabilidade inclusive para garantir que a cobrança se faça em plena conformidade para com a lei, mesmo que isso determine revisão de ato da Receita Federal.
Centros de pesquisa e a imprensa estudam os dados abertos pela AGU. Isso contribui para o controle das transações e para seu aperfeiçoamento. O Núcleo de Tributação, por exemplo, já publicou quatro relatórios no âmbito da PGFN. São divulgados os números sobre os setores que mais aderem à transação, conforme CNAE, as procuradorias mais atuantes e os estados onde estão os contribuintes aderentes. Garante-se acesso à imprensa e controle social à atividade estatal, inclusive quanto a dados importantes sobre o número de termos de transação que exigem garantias e suas formas, percentual de desconto, prestações e outros aspectos.[5]
O PL nº 2.384/23, o chamado PL do Carf, sofreu alterações que comprometem toda essa estrutura de garantias públicas e privadas. Essas alterações pretendem passar para a Receita Federal a transação tributária. Se isso ocorrer:
1) contribuinte e seus advogados não terão mais o complexo de garantias que existem quando a transação ocorre na PGFN;
2) a sociedade, o contribuinte e seus concorrentes não terão mais o controle de legalidade;
3) não se terá controle jurídico, o próprio órgão que constitui a dívida poderá impor o padrão de negociação sobre as empresas e indivíduos;
4) transparência e controle serão prejudicados;
5) haverá avalanche de insegurança jurídica, com ações judiciais de rescisão de transações sem a chancela do devido processo legal.
Cada órgão público possui sua função. As alterações de transferência de atribuições no PL nº 2384 quebram a coerência constitucional e legal do ordenamento jurídico. A Receita Federal possui relevância institucional ímpar, mas não lhe cabe assumir funções que lhe são organicamente estranhas.
Soma-se a isso conjecturas de renúncias fiscais sem atendimento à Lei de Responsabilidade Fiscal. A transação sem controle de legalidade certamente impactará o orçamento, afetando alocação de recursos públicos pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo. A ausência de controle de legalidade será ofensa a contribuintes com igual capacidade contributiva, desobrigando garantias para uns e outros não. Mais. Qual contribuinte aceitaria uma transação feita de forma sigilosa entre seu concorrente e a Receita Federal?
Fonte: Jota