As execuções fiscais têm sido apontadas como um dos principais fatores para a morosidade do Poder Judiciário. São mais de 30 milhões desses processos, que se destinam à recuperação do crédito tributário, representando quase 40% dos casos pendentes no Brasil.
No Estado de São Paulo, a situação é ainda mais grave, pois as execuções fiscais correspondem a 64% dos processos em andamento, criando uma situação de colapso em que todos perdem: a população, obrigada a custear um serviço judiciário moroso e incapaz de atender às expectativas sociais; o Judiciário, reputado como ineficiente e desacreditado; e a Administração Pública, que não consegue reaver os tributos devidos.
Só o Estado de São Paulo conta atualmente com R$ 104 bilhões em débitos inscritos em dívida ativa classificados como irrecuperáveis e R$ 185 bilhões considerados de difícil recuperação. Valores que impressionam e dificilmente ingressarão nos cofres públicos pelas vias ordinárias da execução fiscal, pois menos de 10% encontram-se judicialmente garantidos.
Por isso é tão importante a previsão da transação tributária contida no Projeto de Lei nº 529, encaminhado em agosto pelo governador João Dória à Assembleia Legislativa. Embora merecedora de inúmeras e justas críticas por sua amplitude e tentativa de desmonte do Estado sob pretexto da realização de um reequilíbrio fiscal, a proposta andou muito bem em finalmente regulamentar essa modalidade de extinção do crédito tributário.
Ao contrário da iniciativa privada, o poder público não é livre para transigir, sendo viável a composição com a parte contrária em juízo apenas se houver autorização legislativa para celebração de acordos que levem em consideração o custo-benefício da transação.
Experiência de sucesso na Procuradoria da Fazenda Nacional, que apenas em 2020, até julho, já negociou 204 mil débitos, perfazendo mais de R$ 18,8 bilhões, a transação tributária é celebrada mediante concessões mútuas entre a Administração e o contribuinte e sua regulamentação representará um avanço para a redução da maléfica litigiosidade que assola o contencioso tributário no Estado de São Paulo, constituindo uma nova cultura de respeito e diálogo entre o cidadão e o Fisco, que, através do consenso e da boa-fé, buscam resolver seus litígios.
Restrita aos débitos inscritos em dívida ativa e, portanto, corretamente atribuída com exclusividade à Procuradoria-Geral do Estado, órgão constitucionalmente responsável por sua cobrança, a transação é um instrumento adequado de solução de litígios tributários que vai muito além da mera arrecadação, reduzindo custos e permitido uma resposta adequada aos contribuintes que já não possuem capacidade de pagamento. Em suma, um eficiente programa de estímulo à regularidade fiscal.
A crise provocada pela pandemia da Covid-19 atingiu “em cheio” as empresas brasileiras e todos — Administração e contribuintes — deverão estar prontos para negociar soluções, em diálogo franco e aberto, para colocar novamente a economia nos trilhos e gerar empregos e renda.
Nesse ponto, a regulamentação da transação será essencial, pois se trata de uma ferramenta muito superior aos programas de parcelamento incentivados ou especiais que rotineiramente surgem. Enquanto nos programas de parcelamento todos são tratados igualmente, sem distinção de quem pode e quem não pode pagar, a transação é capaz de olhar as situações individuais e resolver pontualmente um caso, sem nenhum tipo de privilégio, com publicidade dos termos, valores e partes envolvidas.
Anistias e parcelamentos sucessivos estimulam o inadimplemento. Os contribuintes deixam de pagar o tributo devido esperando o benefício no próximo ano. A proposta de transação tributária encaminhada, por sua vez, promove a educação fiscal ao vedar, por dois anos, novo acordo com aquele que teve sua transação rescindida, ainda que relativo a débitos distintos.
Também será permitida a transação por adesão, um instrumento que privilegia os princípios da impessoalidade, igualdade e segurança jurídica, facilitando a solução consensual de conflitos tributários envolvendo o poder público e que coloca, mais uma vez, a advocacia pública no papel de protagonista na redução de litigiosidade. Bem aplicada, tem a capacidade de acelerar a resposta do Estado às demandas de massa e reduzir os riscos de uma aplicação discricionária da legislação.
Seu sucesso, dependerá de uma atuação firme da Procuradoria do Estado no sentido de criar condições reais e justas para os acordos, capazes de convencer o particular a aderir à proposta
As transigências permitidas estarão vinculadas ao grau de recuperabilidade das dívidas objeto da transação e a possibilidade de êxito da Fazenda na demanda. Também ficará regulamentada no Estado de São Paulo a tão esperada possibilidade de parcelamento para os devedores em recuperação judicial, extrajudicial e insolvência.
No Estado democrático de Direito, que considera o indivíduo em situação de paridade, em condições de dialogar e participar da gestão pública, não há espaço para uma Administração Pública autoritária e unilateral, que deve ser substituída por um modelo consensual, pautado na participação do cidadão e no acordo de vontades, no âmbito administrativo ou judicial.
Portanto, a aprovação da transação tributária representará, a um só tempo, a criação de um instrumento capaz de aumentar a arrecadação com justiça fiscal, reduzir a litigiosidade, contribuindo para a eficiência jurisdicional, e permitirá à Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo envidar esforços na racionalização da recuperação de ativos, no combate às fraudes estruturadas e na defesa do erário em juízo.
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Por Fabrizio de Lima Pieroni, procurador do Estado de São Paulo, mestre em Direito e presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp).
Revista Consultor Jurídico