Retorno do voto de qualidade no Carf gera apreensão de fuga de investidores

Em janeiro, o voto de qualidade voltou a ser regra nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A retomada, que se deu a partir da publicação da Medida Provisória 1.160/2023, faz parte de um conjunto de ações tomadas por parte do Ministério da Fazenda para melhorar a arrecadação fiscal. Contudo, a mudança é alvo de críticas de que representaria um retrocesso. 

O voto de qualidade define que cabe aos presidentes dos colegiados – conselheiros representantes da Fazenda Nacional – o poder de desempatar as decisões do Carf, sendo regra do Conselho desde 1934. O fim do voto se deu a partir da Lei 13.988/2020, quando o empate passou a favorecer o contribuinte e os casos deixaram de ser desempatados pelo presidente do Conselho, representante do fisco.

Durante os três anos nos quais o voto de qualidade esteve ausente, foram percebidas mudanças no ambiente tributário, como observou o advogado Paulo Fernando Souto Maior Borges, membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro.

“Houve um incremento da atividade econômica, porque o regime que prevaleceu nos últimos anos atrai investimentos por, dentre outras razões, garantir tranquilidade aos investidores de que no Carf haverá um julgamento técnico e, no caso de dúvidas, não irá prevalecer apenas o entendimento fiscal”, avalia.

A principal crítica feita pelo advogado ao retorno do voto de qualidade é a justificativa da medida provisória, publicada logo nos primeiros dias do novo governo: “A motivação para sua edição pela necessidade de incrementar a arrecadação, acompanhado de críticas ao Carf e à sua estrutura atual, sinaliza uma campanha de diminuição do órgão em vez de uma efetiva política fiscal para incremento da sua atividade”, 

Impacto na economia

De acordo com o governo federal, na exposição de motivos da MP, um montante de R$ 59 bilhões ao ano teriam deixado de ser exigidos dos contribuintes em função do desempate pró-contribuinte. Sobre esse aspecto, o diretor Jurídico da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Cassio Borges, comenta que a justificativa admite que o motivo determinante da medida provisória é arrecadar.

“A análise de dados referentes aos processos apreciados pelo Carf nos últimos 5 anos mostra que em 98% dos casos examinados e com ganho de causa do contribuinte autuado não acabaram em empate, mas sim com votações unânimes ou por maioria de votos favoráveis”, afirma. 

“Logo, nos parece que o pequeno percentual de casos afetados pela inexistência do voto de qualidade e decididos, portanto, a favor do contribuinte em caso de empate teve como pontos positivos o aumento da imparcialidade e a redução da litigiosidade judicial”, pontua Cassio Borges.

Para Susy Gomes Hoffmann, coordenadora regional do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e que integrou o Carf por quase dez anos, o problema maior da medida é a criação de “um clima de insegurança jurídica, porque por parte do contribuinte não há nada que possa ser feito para mitigar a regra a não ser contestá-la judicialmente”.

Assim, haveria o risco elevado de judicialização do tema. Inclusive, desde a publicação da medida, contribuintes têm acionado o Judiciário para suspender julgamentos que aconteceriam no Carf. Em alguns casos, eles demandam que o processo, se prosseguir, seja julgado de acordo com a regra de desempate pró-contribuinte, que estava em vigor quando os julgamentos deles transcorriam 

“A partir do momento em que uma mudança de regras é feita com o fim de aumentar a arrecadação, o principal passa a ser não mais a legalidade do processo e sim o impacto fiscal”, afirma Hoffmann. 

A percepção é ecoada por Gustavo Brigagão, presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa). “O Carf não tem caráter arrecadatório, é um órgão de julgamento do crédito tributário. É um órgão técnico, especializado e imparcial”. Nesse sentido, o voto de qualidade assentaria que, no caso de empate, o presidente do Carf, que representa o fisco, teria dois votos.

Nessa linha, os especialistas entendem que seria preciso definir o que se espera do Carf, isto é, se realmente um tribunal que, ao lidar com o contencioso administrativo, funcione como sinalizador de um ambiente de negócios favorável, em que prevalece a segurança jurídica mirada pelos investidores. 

Os críticos apontam que o retorno do voto de qualidade poderia afastar os investidores e afetar o setor produtivo. “É passada a imagem de que o Brasil, além de ter uma legislação tributária extremamente complexa, não garante administrativamente um julgamento imparcial”, diz Hoffmann, ex-conselheira do Carf. 

Além disso, a perda de confiança no Carf teria como provável consequência a busca pelo Judiciário para resolver conflitos que, com o fortalecimento do órgão, poderiam ter sido sanados. O problema já foi crônico e poderia retornar. 

“Com o fim do voto de qualidade, muitas decisões que o contribuinte só conseguia obter no Judiciário, passaram a ser obtidas no próprio Carf. Houve uma economia enorme da máquina administrativa, como também honorários de sucumbência, porque se a Fazenda perde, ela tem que pagar. Então a alteração gerou uma economia inclusive para os cofres públicos”, afirma o advogado tributarista Brigagão. 

Para o aumento da arrecadação pretendido por parte do Ministério da Fazenda, outras alternativas são aventadas, sem impacto para a segurança jurídica. Um passo seria ampliar a fiscalização em relação a empresas com problemas de formalização, que passam ao largo da contribuição devida. 

Outro ponto levantado por Cassio Borges, diretor jurídico da CNI, foi acerca do atual mecanismo de funcionamento da fiscalização da Receita Federal, que poderia ser aprimorado. Ele lembra que, conforme dados do Tribunal de Contas da União, 47% das autuações tributárias da Receita são canceladas nas Delegacias de Julgamento e outros 45% no âmbito do Carf. 

“A qualidade do lançamento tributário e a eficiência do processo administrativo fiscal devem ser os pontos centrais para a redução da litigiosidade e consequente aumento da arrecadação fazendária”, comenta o diretor da CNI. 

De acordo com o Código Tributário Nacional, existe o conceito de in dubio pro Contribuinte, ou seja, na dúvida, a decisão deve ser favorável ao contribuinte. “O voto de qualidade foi extinto e deve continuar assim, como entendeu tanto o Legislativo quanto o Judiciário”, defende o advogado Brigagão.

Voto de qualidade no STF

A MP que trouxe o mecanismo de volta ainda precisa passar por apreciação do Congresso Nacional. O tema também está no Supremo Tribunal Federal (STF). No final de janeiro, a OAB ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra a volta do voto de qualidade. 

Na ADI 7.347, a OAB também pediu uma medida cautelar para que seja aplicada a regra do desempate pró-contribuinte ou, alternativamente, que a proclamação de resultados em caso de empate no Carf fique suspensa até que o Plenário do STF julgue o caso ou que o Congresso Nacional converta a MP em lei. O relator é o ministro Dias Toffoli. A CNI pediu para participar do processo na condição de amicus curiae.

Também é discutida no STF uma proposta de acordo entre a OAB e o Ministério da Fazenda, apresentada em fevereiro. Uma das propostas é que os contribuintes não tenham que pagar multas em casos decididos pelo voto de qualidade no Carf.

Anteriormente, os ministros já haviam se posicionado sobre o voto de qualidade, no julgamento das ADIs 6399, 6403 e 6415, paralisado no ano passado após pedido de vista de André Mendonça. Nesses casos, o fim do mecanismo é questionado.

Os ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski haviam votado pela legalidade da extinção.

Por fim, outro dispositivo da medida em relação ao Carf que preocupa os especialistas é a limitação de que o Conselho possa discutir apenas processos com valores a partir de mil salários mínimos.

“Esse é outro retrocesso, que pode ter como consequência a diminuição do litígio administrativo e o aumento do judicial, além de gerar grande insegurança jurídica para os contribuintes”, comenta Hoffmann.

Fonte: JOTA

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