Choques nas cadeias produtivas globais e tensões geopolíticas incentivam governos a traçar estratégias industriais com subsídios para nacionalizar a fabricação de semicondutores
Os recentes choques nas cadeias produtivas provocados pela pandemia e o acirramento das tensões geopolíticas com a guerra na Ucrânia provocam uma corrida global para garantir o acesso a um insumo fundamental para diversos setores da indústria na era digital: os semicondutores.
Vários países estão tirando do papel planos com subsídios bilionários em uma tentativa de nacionalizar a sua produção de chips, esses pequenos componentes presentes em uma série de produtos, dos celulares e computadores a eletrodomésticos, automóveis e até máquinas pesadas e armamentos.
Na semana passada, o presidente dos EUA, Joe Biden, assinou uma lei para impulsionar o desenvolvimento e a produção desses componentes no território americano. Boa parte da tecnologia por trás dos chips é americana, mas sua produção sempre foi descentralizada, com uma concentração crescente em países asiáticos.
A escassez de semicondutores na pandemia evidenciou a insegurança dos países que precisam importá-los, como os EUA. A recente visita da presidente da Câmara dos Deputados americana, Nancy Pelosi, a Taiwan, um dos principais fornecedores de semicondutores do mundo, expressou essa preocupação, já que a ilha é considerada pela China como parte de seu território e vive sob constante ameaça.
A Lei Chips e Ciência, assinada por Biden, libera US$ 52 bilhões (quase R$ 270 bilhões) em subsídios para empresas que fabricarem semicondutores no país e também prevê investimentos adicionais de US$ 200 bilhões para pesquisas científicas. O texto impede as companhias beneficiárias de expandir ou construir fábricas em países como a China por ao menos uma década.
O passo americano lembra o que a China já deu em 2015. Desde então, investe maciçamente na estatal Semiconductor Manufacturing International Corporation (Smic) para garantir sua autonomia na área até 2025.
Mais recentemente, países europeus e economias emergentes como a Índia também lançaram estratégias de política industrial que buscam proteger as economias nacionais da escassez de chips. As iniciativas também marcam uma ruptura em relação ao modelo de produção descentralizada que vigorou nas últimas décadas no contexto da globalização.
Em comum, os planos têm forte presença de subsídios por parte dos governos, uma vez que se trata de uma indústria que movimenta bilhões e demanda capital intensivo, além de um tempo de maturação para que esses aportes comecem a render frutos. Segundo projeções da World Semiconductor Trade Statistics (WSTS) divulgadas em maio, espera-se que esse mercado movimente US$ 646 bilhões em 2022, alta de 16,3% ante o ano anterior. Para 2023, a previsão é de US$ 680 bilhões.
Alta precisão
No começo do ano, a União Europeia anunciou um plano de € 43 bilhões para estimular a produção de semicondutores no bloco. A UE quer aumentar a sua participação nesse mercado dos atuais 9% para 20% até 2030.
No Japão, o Ministério de Economia, Comércio e Indústria do país anunciou em junho US$ 3,5 bilhões em subsídios para a construção de uma fábrica de chips de US$ 8,6 bilhões em Kumamoto, na costa oeste do país.
Para especialistas, a busca por internalizar a produção de chips deve se intensificar nos próximos anos, mas já era perceptível desde a crise econômica de 2008.
— Há muita clareza de que a fragmentação colocou em xeque o domínio de determinados países em relação às suas cadeias produtivas — diz Uallace Moreira, professor da Faculdade de Economia da UFBA e pesquisador visitante da Universidade Nacional de Seul.
Mas a reintegração de todo o complexo produtivo e tecnológico que envolve os semicondutores não é tão simples. Como destaca o professor colaborador de Engenharia Elétrica da Unicamp, Luiz Carlos Kretly, nesse mercado existem as fabless, como são chamadas as empresas que desenham os circuitos dos semicondutores, e as foundries, que produzem as tecnologias que estão nesse processo. E nem sempre essas atividades são desenvolvidas nos mesmos locais.
— Obviamente, não pode ser feito do dia para a noite. Essas fábricas são de altíssima precisão e demoram muito tempo para serem desenhadas, construídas e testadas — observa o sócio da KPMG Márcio Kamamaru.
E mesmo a possibilidade de uma desaceleração da economia global não deve esfriar completamente a demanda pelos chips.
— Existe uma demanda que foi represada durante essa fase da pandemia e, obviamente, há o crescimento de utilização desse tipo de material em diversos equipamentos e a incorporação de novas tecnologias que, de alguma forma, ajudam a exponencializar essa demanda — disse Kamamaru, destacando o avanço da tecnologia 5G na telefonia.
E o Brasil?
Para os especialistas, o momento atual abre uma janela de oportunidade para o Brasil se inserir nessa cadeia. O obstáculo é a falta de uma estratégia e de investimentos no desenvolvimento local desse tipo de tecnologia.
— O Brasil pode ocupar na América Latina elos nessa cadeia, produzindo semicondutores em joint ventures com empresas internacionais — afirma Moreira, da UFBA.
Ele destaca ainda que investir nesse segmento poderia favorecer a balança comercial brasileira com a exportação de produtos de alto valor agregado, além de gerar empregos para profissionais de maior nível de qualificação e salário.
Fonte: O Globo