Desde 1995, quando foi editada a Lei nº 9.249, as regras de tributação de lucros auferidos por controladas e coligadas de empresas brasileiras no exterior geram controvérsias [1]. Essa lei introduziu um modelo de tributação automática, em 31 de dezembro de cada ano, de tais resultados, que seriam adicionados na base de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) independentemente de um ato de disponibilização efetiva de tais valores.
Após um pequeno hiato, quando vigeram a Instrução Normativa nº 38/1996 e o artigo 1º da Lei nº 9.532/1997, esse sistema de tributação automática passou a ser aplicado de forma contínua com a edição de medidas provisórias nesse sentido, que, por fim, cristalizaram-se no artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 (MP 2.158).
Embora tenha passado por modificações relevantes, atualmente o modelo brasileiro de Tributação em Bases Universais segue inalterado em seu núcleo: lucros auferidos por controladas de empresas brasileiras no exterior devem ser adicionados na apuração do IRPJ e da CSLL, em 31 de dezembro de cada ano [2].
Os dispositivos que regulam esta sistemática de tributação encontram-se previstos na Lei nº 12.973/2014 e na Instrução Normativa nº 1.520/2014, os quais foram estudados extensamente em recente obra do coautor deste artigo, intitulada Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas no Exterior, publicada em sua terceira edição pela editora Quartier Latin.
Entre as controvérsias atinentes a tais regras, uma das mais antigas, e relevantes, refere-se a sua relação com as convenções para evitar a dupla tributação da renda celebradas pelo Brasil. Esse tema, especificamente no que concerne ao seu atual estágio nas decisões no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), será o objeto deste artigo [3].
Desde o início dos debates jurídicos sobre a matéria, desenvolveram-se alguns argumentos para sustentar que a tributação de lucros auferidos por entidades no exterior não teria lugar quando tal entidade não residente fosse domiciliada em país que assinou tratado tributário com o Brasil.
Considerando o cenário contemporâneo do estudo da matéria, podemos identificar quatro situações principais onde a questão se apresenta [4]:
• o argumento de que a tributação de lucros auferidos por controladas no exterior seria afastada pelo artigo 7 (1) dos tratados brasileiros, o qual cuida do tratamento tributário dos “Lucros das Empresas”;
• o argumento de que a tributação de lucros auferidos por controladas no exterior seria afastada no caso de acordos que incluem regras de isenção de dividendos distribuídos, como é o caso, por exemplo, dos tratados celebrados com a Espanha e a Áustria;
• o argumento de que a tributação de lucros auferidos por controladas no exterior seria afastada quando a convenção tem regra específica proibindo a tributação de lucros não distribuídos, como se passa com os acordos assinados com a Eslováquia e a República Tcheca; e
• o reconhecimento de que a tributação seria possível na hipótese de o tratado ter dispositivo específico autorizando a tributação de lucros não distribuídos, como é o caso da convenção celebrada com o México, por exemplo.
Nos comentários adiante, analisaremos, especificamente, o primeiro argumento — referente ao artigo 7 (1) dos acordos brasileiros — e como ele vem sendo abordado em precedentes do Carf.
Em decisões proferidas até 2020, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) havia pacificado o entendimento no sentido de que o artigo 7(1) dos tratados brasileiros e as regras de isenção de dividendos não teriam o condão de bloquear a tributação de lucros não disponibilizados de controladas no exterior, então prevista no artigo 25 da Lei 9.249 e no artigo 74 da MP 2.158, que são o foco da jurisprudência comentada neste texto.
O argumento central acolhido pelo Carf nessas decisões foi no sentido de que o regime de Tributação em Bases Universais brasileiro não alcançaria os lucros da entidade estrangeira, mas sim seu reflexo na controladora residente no Brasil, de modo que não se estaria diante da tributação de lucros da entidade situada no exterior.
O Acórdão nº 9101-002.832, de 12 de maio de 2017, de relatoria do conselheiro André Mendes de Moura, é paradigmático nesse sentido.
Nesse precedente prevaleceu a interpretação de que a materialidade sobre o qual incide a tributação, segundo o artigo 25 da Lei 9.249 e o artigo 74 da MP 2.158, são os lucros, e não os dividendos [5].
Assim, o termo “disponibilizado” da citada regra refere-se ao momento em que os lucros (em quantum proporcional à participação da controladora do Brasil sobre o investimento) consideram-se entregues aos sócios.
Para sustentar essa conclusão, foi estabelecido que, no caso do investimento situado no exterior, a legislação parte da premissa de que os lucros são da investidora brasileira e devem se subordinar, portanto, à política tributária aqui vigente. Dessa forma, sendo o lucro auferido por controlada não residente, caberia a sua adição na base de cálculo do IRPJ e da CSLL, proporcionalmente à participação da pessoa jurídica brasileira no investimento, ao final de cada ano calendário.
Assim, o fato econômico tributável seria a variação patrimonial positiva identificada na controladora brasileira, correspondente aos lucros da controlada no exterior, sendo, portanto, a regra posta pelo artigo 25 da Lei 9.249, c/c o artigo 74 da MP 2.158, compatível com o artigo 7 (1) dos tratados tributários brasileiros.
Segue o relator do Acórdão nº 9101-002.832 afirmando que tal sistema tem como base o poder de decisão que a controladora teria sobre a investida, o que num cenário onde a controlada se encontra num país de tributação menor, poderia levar ao diferimento por tempo indeterminado da tributação dos lucros [6]. Esta interpretação foi reiterada pela CSRF em outras decisões [7].
A decisão, assim, aplicou o entendimento exarado pela Receita Federal por meio da Solução de Consulta Interna Cosit nº 18, de 8 de agosto de 2013, segundo a qual o Artigo 7(1) das convenções internacionais brasileiras não visaria impedir o Estado de residência do controlador de tributar a renda obtida por intermédio de sua participação em sociedades domiciliadas no exterior.
Não haveria, então, incompatibilidade entre a norma interna e o acordo internacional, incidindo a tributação sobre os lucros auferidos pela controladora brasileira. Esta mesma interpretação foi posteriormente defendida pela Receita Federal na Solução de Consulta Cosit nº 400/2017 [8].
Todavia, assa situação jurisprudencial começou a se alterar a partir do final de 2021, mais especificamente no Acórdão n. 9101-005.809, cujo resultado foi prolatado na sessão de julgamento de 6 de outubro de 2021. Essa decisão é representativa da mudança do entendimento que até então preponderava na Primeira Turma da CSRF.
É, de fato, digno de análise detalhada esse precedente, uma vez que nele constam todos os principais argumentos que por anos prevaleceram no Carf acerca da relação do artigo 25 da Lei 9.249 e do artigo 74 da MP 2.158 com os tratados internacionais tributários brasileiros (voto vencido, da Conselheira Edeli Bessa). Ao mesmo tempo, esse precedente apresenta as razões da virada de entendimento, o conhecido overruling, no voto vencedor escrito pelo conselheiro Caio Quintella.
No caso concreto avaliado pelo colegiado no Acórdão nº 9101-005.809, estava em jogo a Convenção Brasil-Argentina e os lucros auferidos pelo mesmo grupo empresarial que fora julgado no supramencionado Acórdão nº 9101-002.832, distinguindo-se a questão unicamente pelos anos-calendário em análise. Assim, o voto vencido tomou como razões de decidir aquelas adotadas no Acórdão nº 9101-002.832, resolvendo a lide com base na contraposição entre o artigo 74 da MP 2.185 e o artigo 7 (1) do tratado internacional [9].
Ademais, o voto vencido destaca que artigo 74 da MP 2.158 se enquadra no conceito de legislação de tributação de lucros de controladas no exterior referida internacionalmente como “regras CFC” (Controlled Foreign Companies), consoante jurisprudência do próprio Colegiado. O papel das normas CFC foi um dos ganchos [10] da discussão travada entre os conselheiros integrantes da 1ª Turma da CSRF. Nas palavras do voto vencedor:
“Ocorre que, a norma CFC brasileira é extremamente ampla e abrangente, sendo prevista pelo Legislador e aplicada pela Administração Tributária de maneira ordinária e totalmente indistinta, independentemente de terem sido elencadas em sua redação as hipóteses elisivas — ou elusivas — a serem combatidas, as quais justificariam a sua compatibilidade, excepcional, com as regras dos acordos e convenções, denotando, assim, uma maior aptidão arrecadatória (e não antielisiva ou, principalmente, como comumente adotada por outras jurisdições fiscais, antiabusiva).”
Argumentou-se, portanto, que em regra o regime de CFC tem como função a correção de abusos [11]. A ideia central seria evitar a utilização de sociedades interpostas em países de tributação favorecida, tendo como consequência a não ocorrência ou o de diferimento da tributação.
Todavia, isso não ocorre no regime de CFC adotado pelo Brasil, uma vez que o artigo 25 da Lei 9.249, c/c o artigo 74 da MP 2.158, estabelecia um regime de transparência fiscal distinto, considerando os lucros apurados por qualquer controlada no exterior como auferidos diretamente pela controladora no Brasil. A questão, então, é se essa sistemática de tributação deveria ser aplicada diante do artigo 7 (1) do tratado celebrado entre Brasil e Argentina.
Sustenta o voto vencedor, com base no artigo 98 do CTN e na jurisprudência do STJ (Recurso Especial nº 1.325.709), a prevalência dos tratados internacionais sobre a legislação nacional, “o que atribui aos comandos dos Acordos e Convenções a natureza de norma de bloqueio em relação à legislação interna, quando esta não se harmoniza com tais disposições binacionais”.
De tudo isso, percebe-se que voto vencido e voto vencedor do Acórdão n. 9101-005.809 concluem harmoniosamente que o artigo 74 da MP 2.158 se refere ao lucro, e não a dividendos (ficando prejudicada toda a discussão que havia sobre o dispositivo cuidar de dividendos fictícios).
Também ambos concordam que o artigo 74 é norma CFC. Dessarte, tentando reduzir ao máximo a complexidade da questão, o ponto realmente é, como já aventado acima, se o lucro tributável é da controlada no exterior ou da controladora brasileira. Sendo da controlada no exterior, deve haver aplicação do artigo 7 (1) do tratado internacional, ficando vedada a tributação no Brasil. Sendo da controladora brasileira, não haveria lugar para a aplicação do artigo 7 (1) do tratado.
Sobre esse ponto, a Conselheira Livia Germano no Acórdão nº 9101-005.808 (julgado na mesma sentada do Acórdão n. 9101-005.809), esclarece que o artigo 74 da MP 2.158 literalmente dispôs que os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil.
Desse modo, “a norma claramente pretendeu alcançar os lucros da empresa estrangeira, e não seu reflexo na controladora brasileira, que é o resultado de equivalência patrimonial”. Mais adiante conclui que “sendo assim, a tributação não é possível quando existe acordo para evitar a dupla tributação firmado entre o Brasil e o país de residência da controlada ou coligada, tendo em vista o disposto no artigo 7º de tais tratados”.
Nos acórdãos 9101-006.097 e 9101-006.102, ambos de 11 de maio de 2022, adicionou-se o argumento de que “o artigo 7º das Convenções para Evitar a Dupla Tributação firmadas pelo Brasil protege do imposto brasileiro os lucros das empresas sediadas no exterior, sendo relevante notar que seu escopo não é subjetivo (as empresas), mas objetivo (os lucros das empresas)” [12].
Nesse contexto, hoje a 1ª Turma da CSRF julga que a materialidade abrangida pela legislação brasileira de tributação universal, antes do advento da Lei 12.973/2014, consistia nos lucros de controladas no exterior.
Em sendo assim, deve-se dar prevalência para a aplicação dos tratados internacionais, de forma a bloquear a incidência do artigo 25 da Lei 9.249 e do artigo 74 da MP 2.158, enquanto norma CFC com contornos específicos desenhados pela legislação brasileira. Embora essas decisões levem em consideração unicamente os já suplantados dispositivos legais, não parece haver razão para que o tema venha a ser tratado de forma distinta no cenário após a entrada em vigor da Lei nº 12.973/2014 [13]. Afinal, embora a sistemática atual tenha características próprias, seu ponto de partida é o mesmo: a tributação automática dos lucros não disponibilizados auferidos por controladas no exterior.
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[1] Uma vez que atualmente os lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior estão submetidos a regimes distintos de tributação, neste artigo trataremos apenas dos lucros de controladas não residentes.
[2] Ver: ROCHA, Sergio André. Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas no Exterior. 3ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 171.
[3] Para uma análise detalhada da evolução deste debate nas decisões do CARF, ver: Ibidem. p. 115-133.
[4] Ibidem. p. 73-99.
[5] Trata então da conceituação de dividendo enquanto uma das destinações dadas ao resultado empresarial.
[6] O artigo 26 da Lei n. 9.249/95, ao criar o sistema de compensação dos recolhimentos feitos pela investida no exterior, corroboraria o ponto em questão, segundo o entendimento esposado pelo Acórdão nº 9101-002.832.
[7] Como exemplo de outro julgamento bastante importante a respeito do tema, tem-se o Acórdão 9101-002.332, de 4/5/2016, de relatoria do Conselheiro Luis Flávio Neto, sendo o voto vencedor da lavra do Conselheiro Marcos Valadão, o qual analisou os Artigos 7 e 10 do Tratado Brasil – Holanda.
[8] Ver: ROCHA, Sergio André. Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas no Exterior. 3ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 104-110.
[9] Afirma então que nem seriam relevantes as questões acerca da interpretação dos artigos 10 e 23 do tratado, mas o faz em obter dictum.
[10] Outro gancho importante na discussão foram os limites do julgamento pelo STF na ADI 2.588, no RE 541.090/SC e no RE 541.090/SC.
[11] No caso concreto que estava sob julgamento não havia qualquer referência a atuação abusiva (planejamento tributário internacional ilícito, treaty shopping, etc.).
[12] Nesse sentido, ver: ROCHA, Sergio André. Tributação de Lucros Auferidos por Controladas e Coligadas no Exterior. 3ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 175-176.
[13] Ibidem. p. 174-177.
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Por Sergio André Rocha, professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj;
Thais de Laurentiis, conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.
Fonte: Revista Consultor Jurídico