Por Heleno Taveira Torres
Espera-se que a repercussão geral do RE nº 928.942/SP (Tema 914) que está em julgamento no STF ponha fim à inconstitucionalidade latente da Cide sobre remessas ao exterior, prevista na Lei nº 10.168/2000, que desde a alteração pela Lei nº 10.332/2001, a pretexto de estimular a inovação e o desenvolvimento tecnológico brasileiros, teve seu âmbito material de incidência ampliado para alcançar as remessas ao exterior por qualquer contrato que envolva conhecimentos técnicos, ainda que não compreendam a transferência de tecnologia.
Os custos de muitas operações foram agravados pela tributação da Cide, sem que isso tenha trazido qualquer vantagem relevante para a inovação ou a produção de tecnologia nacional.
Como sabido, o artigo 149 da CF limitou as materialidades das hipóteses de instituição da incidência de Cide à “atuação [da União] nas respectivas áreas”. Portanto, a motivação constitucional deve vincular a instituição e cobrança de Cide-Royalties, que somente poderia ser empregada a hipóteses ou agentes que atuam no ramo de pesquisa, ciência e tecnologia com royalties oriundos de know-how ou transferência de tecnologia.
Logo, o binômio finalidade-motivo está bem delimitado na Constituição como fundamento para a incidência e não pode se confundir com forma adicional de IRRF para incidir sobre todas as remessas para o exterior, na forma como se tem na atualidade.
E quanto aos gastos públicos, pela parametricidade entre as competências constitucionais e as leis instituidoras das CIDE, impõe-se que a intervenção mantenha nítida referência primária e fidelidade aos motivos constitucionais que ensejaram a criação. Não por outro motivo, a ADI nº 2.925/DF definiu inconstitucional todo uso das Cide que não reflitam anseios constitucionais, mesmo por conta orçamentária de mero contingenciamento.[1]
Não destoa dessa compreensão o parágrafo único do artigo 8º da LRF, segundo o qual os recursos vinculados “serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso”. Destarte, nenhuma lei ou atuação da Administração Tributária está autorizada a desviar o emprego da aplicação ou destinação dos recursos das Cide.
Na origem, a Cide-Royalties, fruto da Lei nº 10.168/2000, foi destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação (artigos 1º e 2º), por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT — artigo 4º). Logo, não cabe o entendimento que também poderiam ser alcançadas pela Cide quaisquer materialidades que não resguardem pertinência com os artigos 149 e 218 da CF, fontes de referibilidade primária da exação.
Em atualização promovida pela Lei nº 10.332/2001, a Cide-royalties sofreu ajustes sobre a materialidade de sua hipótese de incidência, com ampliação em seu artigo 2º, § 2º, ao tempo que deixou de incidir apenas sobre pagamentos de royalties, nas suas várias modalidades, para alcançar todos os pagamentos, feitos por pessoas jurídicas residentes no Brasil, por meio de remessas a beneficiários no exterior, a título de contratação de serviços técnicos, de assistência administrativa e de semelhantes, bem assim de “royalties a qualquer título”.
Nessa ordem de ideias, são abarcados pelo critério material da norma tributária da Cide-Remessas os seguintes “fatos jurídico-tributários” relacionados a residentes ou domiciliados no exterior: (i) ser detentor de licença de uso de conhecimentos tecnológicos; (ii) ser adquirente de conhecimentos tecnológicos, mediante cessão de direitos de propriedade industrial; (iii) ser signatário de contratos que impliquem transferência de tecnologia (relativos à exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica; (iv) ser signatário de contratos que tenham por objeto prestações de serviços técnicos; (v) ser signatário de contratos para obter assistência administrativa por residentes ou domiciliados no exterior; (vi) ser signatário de contratos de prestações de serviços semelhantes a serviços técnicos ou assistência administrativa; e (vii) pagar, creditar, entregar, empregar ou remeter royalties, a qualquer título.
É precisamente o que ocorre com a veiculação, no País, de obras cinematográficas estrangeiras, consoante já tivemos a oportunidade de assinalar, cujos pagamentos são submetidos à CIDE-Remessas, em duplicidade com a Condecine, ainda que inexista qualquer transferência de tecnologia na operação. E os transtornos são dos mais variados e alcançam tudo aquilo que se possa subsumir aos “royalties a qualquer título”. Qualquer serviço, sem distinção, unicamente no afã arrecadatório explícito.
Ora, royalties não podem representar remuneração por direitos autorais, mas apenas a contrapartida pelo uso, cessão ou transferência de propriedade industrial. A segmentação entre direitos autorais, que nascem junto com a criação da obra do autor (artigo 18 da Lei nº 9.610/1998) e propriedade industriais é manifesta. A Lei nº 4.131/1962, que trata das remessas financeiras ao exterior, referiu-se aos royalties, em seus artigos 11 e 12, como pagamento devido “pela exploração de patentes de invenção, ou uso da[s] marcas de indústria e de comércio” (artigos 11 e 12). Não há qualquer alusão aos direitos autorais.
A Cide-royalties não poderia apresentar papel outro senão a geração de recursos para o desenvolvimento da indústria brasileira a partir de remessas que envolvessem contratos com tecnologia. Dessa forma, como bem adverte Marco Aurelio Greco, “não pode incidir sobre contratos que tenham outros objetos, como a licença do uso de software”.[2]
Qualquer tentativa de desfigurar a Cide como equivalente ou adicional do IRRF não tem qualquer respaldo no artigo 149 da CF. Sua correta aplicação, portanto, deveria manter cobrança conexa aos pressupostos do art. 218 da CF, mediante a atuação estatal interventiva no segmento da ciência e tecnologia e incentivos ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológicas.
Neste particular, a solidariedade de grupo, vinculada à Cide, permite restringir-lhes o espectro de sujeição passiva, a despeito das necessidades arrecadatórias, como foi reconhecido pelo STF no julgamento do AgRg no RE nº 595.670, quando assentou que “a sujeição passiva deve ser atribuída aos agentes que atuem no segmento econômico alcançado pela intervenção estatal”.[3] Desvirtua esta materialidade, portanto, a tentativa da RFB de cobrar Cide sobre todo e qualquer sujeito, ainda que alheio ao setor de tecnologia, pesquisa e desenvolvimento.
Interpretação diversa macula a segurança jurídica, na medida em que viola o dever de coerência entre as normas que compõem a competência constitucional e as leis materiais ou seus atos de aplicação, por meio de mecanismos estatais interventivos alheados do motivo constitucional, conforme a “atuação” da União, do artigo 149 da Constituição.
Antigos julgados do STJ consagravam que a Cide-royalties somente seria devida na circunstância da pessoa jurídica ser: (i) “detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos” ou (ii) “signatária de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior”.[4]
Não é este, entretanto, o sentido atualmente adotado em diversos tribunais administrativos e judiciais, a exemplo da Súmula nº 127 do Carf, que admite a incidência da Cide “na contratação de serviços técnicos prestados por residentes ou domiciliados no exterior” ainda que inexista “transferência de tecnologia”.
Recentemente, a 2ª Turma do STJ decidiu que a Cide-Royalties incide nos casos de fornecimento de tecnologia, mesmo que não ocorra acesso ao código fonte, ou seja, sem a “absorção de tecnologia”.[5] A matéria demanda exame constitucional.
Eis, portanto, a relevância da repercussão geral do Tema 914, em curso de julgamento pelo STF, porquanto a vagueza da expressão “royalties a qualquer título” sem uma interpretação conforme que restrinja seu alcance ao sentido constitucional de promoção da tecnologia (artigo 218 e 219 da CF) compromete a segurança jurídica da tributação no país.
A ampliação inconstitucional da Cide-Royalties, nas hipóteses que não guardam conexão com a transferência de tecnologia, adiciona custos tributários indevidos às empresas e, portanto, encarece o produto nacional e frustra sua posição competitiva no mercado internacional. Com isso, cria-se simples tentativa arrecadatória que só tem como função prejudicar a repartição constitucional de receitas com estados e municípios, pela redução do IR-Fonte.
Em conclusão, o STF tem a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da Cide-Remessas, naquelas hipóteses que não guardem conexão material com transferência de tecnologias, única situação conexa com o financiamento do Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação, a demarcar a “atuação” da União na área, conforme o artigo 149 da Constituição.
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[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Relatora Ministra Ellen Gracie, Redator do Acórdão Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 19/12/2003, DJe 04/03/2005.
[2] GRECO, Marco Aurélio. Em busca do controle sobre as CIDE’s. In: MOREIRA, André Mendes, RABELO FILHO, Antônio Reinaldo; CORREIA, Armênio Lopes (Org.). Direito das Telecomunicações e Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 328-329.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE nº 595.670 AgR, Relator Ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, j. 27/05/2014, DJe 20/06/2014
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. REsp nº 1.186.160/SP, Relator Ministro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 26/08/2010, DJe 30/09/2010.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. REsp nº 1.642.249/SP, Relator Ministro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 15/08/2017, DJe 23/10/2017.
Fonte: CONJUR