Brasil e Holanda acordam sobre qualificação dos JCP

A qualificação dos JCP como “juros” implica mudanças fiscais relevantes

Não é incomum que empresas residentes na Holanda realizem investimentos no Brasil.

Por conta das vantagens fiscais, a Holanda é um país utilizado como instrumento para investimentos no Brasil, principalmente por empresas localizadas em países com os quais o país não assinou tratado contra a bitributação, como é o caso dos Estados Unidos.

Como exemplo dessas vantagens fiscais, a legislação de imposto de renda da Holanda isenta a tributação dos lucros distribuídos a sócios nela residentes ou no exterior, por meio do conhecido participation exemption regime.

O objetivo desse regime é a integração das figuras da sociedade e do acionista, a fim de evitar a dupla tributação econômica dos lucros.

É usual que as empresas holandesas capitalizem as subsidiárias brasileiras com capital próprio e remunerem os acionistas por meio do pagamento de JCP.

Nessa operação, os rendimentos enviados à Holanda estão sujeitos ao pagamento do imposto de renda na fonte à alíquota de 15% no Brasil.

Como o cap previsto no tratado prevê o mesmo percentual, essas remessas, no final do dia, são tributadas exclusivamente naquele percentual.

Na pessoa jurídica, os JCP pagos a sócios no Brasil ou no exterior são dedutíveis do lucro real (art. 9º da Lei 9.249/1995).

É antiga a discussão sobre a natureza dos JCP: se seria de juros ou de dividendos.

Aqueles que defendem a natureza de dividendos dos JCP ressaltam que: (i) os JCP são pagos apenas aos sócios ou acionistas na proporção da sua participação no capital social e somente em caso de haver lucros a distribuir; (ii) o valor pago a título de remuneração do capital próprio poderá ser imputado ao valor do dividendo mínimo obrigatório.

Por outro lado, aqueles que defendem a natureza de “juros” dos JCP afirmam que o fato de o pagamento da remuneração estar condicionado à existência de lucros não significa que o instrumento tenha a natureza de dividendos e que os JCP, diferentemente dos dividendos, são pagos com base no custo de oportunidade.

A redação do artigo 11 do tratado firmado entre Brasil e Holanda estabelece que o elemento central para a qualificação de determinado rendimento como juros reside no fato de tal rendimento se referir a um crédito de qualquer natureza (“debt claim“), isto é, uma renda relativa a valores anteriormente mutuados (dívida). Não é o caso dos JCP.

Porém, mesmo não tendo a natureza de debt claim, a qualificação de JCP como “juros” é cabível nas hipóteses em que o tratado preveja as conhecidas cláusulas de reenvio (renvoi clause), como ocorre nos acordos firmados entre Brasil e Argentina, Áustria, Bélgica, República Tcheca, Dinamarca, Equador, França, Hungria, Japão, Coreia do Sul, Luxemburgo, Noruega, Filipinas, Eslováquia, Espanha, Suécia e Holanda.

Nesses acordos tributários, qualificam-se como “juros” os rendimentos decorrentes de um debt claim e qualquer outro negócio jurídico que, nos termos da lei tributária do Estado Contratante de que provenha, sejam semelhantes aos de empréstimo.

Assim, ainda que haja dúvidas sobre a natureza dos JCP em face do Direito Privado, parece-nos inquestionável classificarem-se esses rendimentos como “juros” para fins de aplicação de tratados que prevejam a renvoi clause, tendo em vista que, nos termos da lei tributária nacional, os JCP são dedutíveis, e esse tratamento somente é conferido aos juros, e não aos dividendos.

A propósito, tal interpretação também é possível nos casos em que os estados contratantes negociaram protocolos prevendo que os JCP devem ser qualificados como “juros” para efeitos do artigo 11 (3) do respectivo tratado. É o caso dos tratados firmados entre Brasil e Chile, Israel, México, Peru, Portugal, Rússia, África do Sul, Suíça, Trinidad e Tobago, Turquia, Ucrânia, Emirados Árabes Unidos e Venezuela.

Apenas os tratados celebrados pelo Brasil com a China e com a Finlândia não estipulam a cláusula de reenvio (renvoi clause) nem preveem cláusula em protocolo que qualifique os JCP como “juros” para fins de aplicação do artigo 11 (3) do tratado.

No caso específico da Holanda, as autoridades holandesas consideravam, no passado, que os JCP deveriam ser qualificados como “dividendos”.

Ao longo dos anos, porém, as autoridades tributárias holandesas introduziram regras antielisivas para combater o planejamento fiscal abusivo e a erosão da base tributária.

Nesse passo, com as alterações promovidas pela Parent-Subsidiary Directive, a Holanda passou a não isentar, a partir de janeiro de 2016, os dividendos recebidos por sócios holandeses que tivessem como componente instrumentos híbridos, incluindo os JCP.

Tal posição das autoridades holandesas foi reforçada por meio do Decreto 2020-14853, publicado em 27/08/2020. Nesse decreto, as autoridades afirmaram que os JCP devem ser qualificados como “juros” para fins de interpretação do tratado tributário firmado entre Brasil e Holanda.

Recentemente, a RFB e as autoridades fiscais holandesas alcançaram um mutual agreement e concordaram que os JCP devem ser qualificados como juros (art. 11 do tratado) para fins de aplicação do tratado firmado entre Brasil e Holanda. Como há cláusula de reenvio no tratado, parece-nos que essa posição é acertada.

Tal interpretação é importante porque há cláusula de matching credit no tratado firmado entre o Brasil e a Holanda, por meio da qual o estado de residência (no caso, a Holanda) deve conceder um crédito superior ao imposto pago no estado da fonte (no caso, o Brasil).

De acordo com o art. 23 (4) do tratado, o imposto pago no Brasil será considerado pago à alíquota de: a) 25%, se os rendimentos forem qualificados como dividendos e se forem pagos a uma sociedade holandesa que detenha no mínimo 10% (dez por cento) do capital votante da sociedade brasileira, e 20% (vinte por cento) nos demais casos; ou b) 20%, se os rendimentos forem qualificados como juros.

Considerando que a alíquota do imposto de renda das pessoas jurídicas na Holanda gira em torno de 25%, os sócios residentes nesse país, que antes não tinham imposto a pagar, deverão, agora, recolher ao menos 5%.

Assim, se determinada subsidiária brasileira (optante pelo regime do lucro real) aufere lucros no valor de 500.000 e os repassa à sua controladora holandesa a título de JCP, qualificados como “juros” pelas autoridades holandesas, os efeitos tributários na empresa brasileira serão anulados, por conta da dedutibilidade dos JCP, mas ela terá que reter o IRRF à alíquota de 15% e terá que pagar um percentual na Holanda.

Subsidiária brasileira

1. Capital investido                 5.000.000,00

2. Retorno do investimento (10% de 1.)      500.000,00

3. Retenção na fonte  (15%)             75.000,00

4. JCP distribuídos                   500.000,00

Controladora holandesa

1. JCP recebidos                   500.000,00

2. Tributação PJ  (25%)            125.000,00

3. Crédito (20% tratado)                   100.000,00

4. Tributação efetiva na Holanda       25.000,00

5. Carga tributária total           100.000,00 

Nesse caso, a carga tributária final será de 100.000. A obrigação é maior do que a incorrida pelo grupo empresarial no passado, quando as autoridades fiscais holandesas qualificavam os rendimentos como dividendos. Veja-se:

Subsidiária brasileira

1. Capital investido                 5.000.000,00

2. Retorno do investimento (10% de 1.)      500.000,00

3. Retenção na fonte   (15%)            75.000,00

4. JCP distribuídos                   500.000,00

 

Controladora holandesa

1. JCP recebidos                   500.000,00

2. Tributação PJ  (25%)            125.000,00

3. Crédito (25% tratado)                   125.000,00

4. Tributação efetiva na Holanda          –

5. Carga tributária total             75.000,00 

De qualquer forma, pagar JCP continua sendo mais vantajoso do que distribuir dividendos.

Veja-se no seguinte exemplo: a empresa holandesa investe na brasileira, que é optante pelo regime do pelo lucro real e, também nesta hipótese, aufere lucro (antes da tributação) no valor de 500.000; esse valor é distribuído à empresa holandesa a título de dividendos. Nesta hipótese, os efeitos tributários na empresa brasileira não são anulados, pois não há dedução; a tributação do lucro no Brasil é de 34% e a distribuição de dividendos é isenta, não havendo, por essa razão, retenção na fonte.

Subsidiária brasileira

1. Capital investido                 5.000.000,00

2. Retorno do investimento (10% de 1.)      500.000,00

3. Tributação PJ (34%)                   170.000,00

4. Lucros distribuíveis                     330.000,00

 

Controladora holandesa

1. Dividendos recebidos                   330.000,00

2. Tributação PJ  (25%)             82.500,00

3. Crédito (25% tratado)                    82.500,00

4. Tributação efetiva na Holanda          –

5. Carga tributária total             170.000,00

Nesse caso, a carga tributária final é de 170.000, enquanto a carga tributária final no primeiro exemplo seria de 100.000.

Desse modo, com a edição do Decreto 2020-14853 pela administração tributária holandesa e com o mutual agreement pactuado entre Brasil e Holanda recentemente, os JCP devem ser qualificados como juros, razão pela qual o grupo arcará com uma carga tributária maior, no nível do investidor, em comparação com o tratamento fiscal anterior, quando as autoridades fiscais holandesas qualificavam tais rendimentos dividendos.

Apesar disso, pagar JCP aos acionistas ainda parece ser mais vantajoso do que distribuir dividendos, considerando que, nesse caso, não há possibilidade de dedução do rendimento pago pela subsidiária.

POR GABRIEL BEZ BATTI

Fonte: Jota

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