Comprei virtual land. E agora? Devo pagar ITBI?

Momento é de mais dúvidas do que certezas, mas alguns pontos já podem ser estabelecidos em tributação no metaverso

POR MELISSA GUIMARÃES CASTELLO

Vamos falar sério: nós, os dinossauros, olhamos para notícias como a de que Neymar investiu R$ 6 milhões em famosa coleção de NFTs, a de que o primeiro iate de luxo do metaverso foi vendido por R$ 4 milhões, e a de que um terreno virtual custa R$ 60 mil, e ficamos nos perguntando se se trata de um devaneio coletivo pós-pandêmico, não é?

Mas o tal do metaverso tem potencial de crescer a uma taxa anual de 43,3% ao ano, atingindo US$ 829 bilhões em 2028, segundo pesquisa divulgada pelo Valor Econômico. Nesse processo de crescimento, ele interconectará pessoas remotamente, tornando as fronteiras entre real e virtual cada vez mais fluídas. E é por seu potencial de crescimento que nós temos que falar sobre tributação no metaverso.

É claro que estamos em um momento de mais dúvidas do que certezas, como bem apontado por Luiz Roberto Peroba e Bruno Lorette Corrêa, e por Ana Carolina Carpinetti e Renato Henrique Caumo, em recentes artigos no JOTA. Contudo, alguns pontos já podem ser estabelecidos.

O primeiro deles é que: não, se você comprou virtual land, você não deve pagar ITBI. Isso porque o ITBI incide sobre a transmissão, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, ou sobre a transmissão de direitos reais sobre imóveis, como expressamente previsto no art. 156, II, da Constituição. Por mais que as pessoas introjetem o conceito de que há uma segunda vida, no universo virtual, e de que nessa segunda vida elas precisam de propriedades, não há como confundir um terreno virtual com o seu correspondente físico. No atual estágio de desenvolvimento, imóveis são bens que se incorporam ao solo, e não intangíveis digitais, afastando-se a incidência do ITBI.

Mas qual imposto você deve pagar?

É aí que chegamos ao ponto central desse artigo: na compra de virtual land houve uma operação de consumo, e deve incidir um imposto sobre o consumo.

Se estivéssemos na Europa, a resposta seria “fácil”: incidiria o IVA, por se tratar de transferência de um intangível digital, que, no sistema europeu, é equiparada a uma prestação de serviços.

Mas a resposta somente aparenta ser fácil. Uma série de dúvidas acerca do local em que ocorre o fato gerador, a forma de arrecadação etc. dificultam a definição da operação tributável. Por estas dificuldades, aliás, a Suprema Corte da Alemanha decidiu, no último dia 17 de março, que o aluguel de terrenos virtuais, em uma plataforma do metaverso de empresa estabelecida nos EUA, não constitui fato gerador de IVA para a Alemanha. Conforme a decisão, até poderia incidir IVA sobre as operações no metaverso, mas não na Alemanha.

Se estivéssemos nos EUA, a resposta seria um pouco mais difícil, mas está começando a se delinear: incide o sales tax, o imposto sobre vendas norte-americano. Com efeito, a empresa Linden Lab, responsável pelo jogo Second Life (o metaverso mais antigo, que existe desde 2003), começa a cobrar, em 31 de março de 2022, sales tax sobre as operações no metaverso realizadas por jogadores residentes nos EUA. Segundo a empresa, neste momento inicial somente serão tributadas as assinaturas mensais e a compra de virtual land. A empresa fundamenta sua decisão de recolher sales tax no precedente da Suprema Corte no caso South Dakota v. Mayfair Inc. (2018), segundo o qual o sales tax, no caso de vendas remotas, deve ser paga ao estado destinatário do bem, mesmo quando há vendas feitas por empresas sem estabelecimento comercial neste estado.

E no Brasil?

No Brasil, a história é outra. Como venho reiteradamente dizendo, a divisão de competências entre estados e municípios, para tributar o consumo, complica as coisas. Mas, aos poucos, vamos evoluindo.

A partir do precedente da ADI 1.945, já temos a clareza de que as operações com software devem ser tributadas pelo ISS. No entender do STF, estas operações são uma prestação de serviços. Isso porque o legislador complementar buscou dirimir conflitos de competência em matéria tributária envolvendo softwares, ao elencar, no subitem 1.05 da lista de serviços tributáveis pelo ISS, anexa à LC 116/2003, o licenciamento e a cessão de direito de uso de programas de computação.

Mas, como amplamente comentado quando da publicação do acórdão, o STF resolveu o problema da pontinha do iceberg. Toda a camada subterrânea segue em uma zona cinza tributária. E o metaverso está nessa camada subterrânea.

Quando você compra virtual land, está contratando uma prestação de serviços? Qual serviço? Tradicionalmente, o STF considera que há prestação de serviços quando há um esforço humano, direcionado ao atendimento de uma obrigação de fazer. Em casos mais recentes, apesar de não ter formalmente se afastado do conceito tradicional, a Suprema Corte ampliou o conceito de prestação de serviços, para abranger as situações enumeradas na lista de serviços anexa à LC 116/2003, ainda que não esteja tão claro e presente o componente de “esforço humano” na operação realizada. Esta tendência ampliativa poderia levar à conclusão de que se está diante de fato gerador de ISS.

Nessa linha, e seguindo na análise dos fatores que levaram o STF, na ADI 1.945, a considerar o licenciamento ou a cessão de direito de uso de software como um serviço, importa mencionar que o Supremo deu especial relevância ao fato de que esta atividade está expressamente prevista no item 1.05 da lista de serviços anexo à LC 116/2003. Segundo Ana Cláudia Utumi, “o STF traçou uma ‘linha mestre’ importante para análise quanto à incidência de ISS e ICMS: na medida em que o legislador complementar, no exercício de sua liberdade, os qualifique como serviços […] deve-se respeitar a opção do legislador complementar, e prevalecer a incidência de ISS”. Por uma questão de coerência, deve ser adotada esta mesma atitude de deferência ao legislador complementar, para analisar o caso da tributação dos terrenos virtuais.

Mas, ao contrário do ocorrido com o licenciamento de software, a compra e venda de virtual land não está contemplada nas hipóteses da lista anexa à LC 116/2003. Nessas aquisições, há a cessão definitiva do token (o código que corresponde ao terreno virtual), de modo que não parece ser possível enquadrar a operação no item 1.09 da lista de serviços, que trata da cessão provisória de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet. Tampouco parece viável enquadrar a operação em nenhuma das outras hipóteses do item 1. Por este motivo, dado o panorama legislativo existente, não deve incidir ISS.

Ademais, a natureza dos tokens que representam os terrenos virtuais está muito distante do conceito de prestação de serviços adotado pelo STF. Nessa operação não prepondera o esforço humano para desenvolvimento de um sistema de informação, mas a relação de troca de um bem pelo seu correspondente em criptomoedas (o dinheiro que é correntemente aceito no metaverso). Os terrenos virtuais podem ser transacionados e livremente vendidos por seus proprietários, em operações de compra e venda, com cessão definitiva da propriedade.

Por isso, as transações de virtual land parecem estar mais próximas a uma compra e venda de mercadoria, ainda que esta mercadoria não tenha materialidade física. Nesse ponto, é relevante indicar que o STF, no julgamento da ADI 1.945, chegou a afirmar que os softwares podem ser considerados “bens digitais incorpóreos”; e que, quando esses bens digitais incorpóreos são passíveis de comércio, eles podem, a depender das características do negócio jurídico, configurar fato gerador do ICMS. Ou seja, a jurisprudência do Supremo acolhe a possibilidade de incidência de ICMS sobre a circulação de mercadoria virtual, ainda que, no caso dos softwares, tenha concluído pela incidência de ISS.

A transação com virtual land, quando realizada com habitualidade e com intuito comercial, parece enquadrável nesse conceito de transação com mercadoria virtual: uma pessoa transfere, a título oneroso, para outra, a propriedade de um bem digital incorpóreo. Essa cessão é definitiva, na medida em que o direito de propriedade fica registrado em um NFT (non fungible token), um token em blockchain cuja chave criptográfica deve ser guardada por seu proprietário. Portanto, todos os aspectos da hipótese de incidência do ICMS parecem ocorrer na operação.

Por isso, em se tratando de compra e venda de bem digital incorpóreo, a operação com virtual land deve pagar ICMS.

Como vai se operacionalizar esta incidência? Onde ocorre o fato gerador? Essas perguntas, bem como todos os desdobramentos destas breves linhas, deixo para os universitários.

Fonte: Jota


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