Com 5 votos a favor do desempate pró-contribuinte, julgamento foi interrompido por pedido de vista de Nunes Marques
Por Gisele Barra Bossa e Danielle Caldeirão Santos Castilho
É grande a expectativa pela conclusão do julgamento a respeito da constitucionalidade do tema do fim do voto de qualidade do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que foi retomado e novamente interrompido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 24 de março.
Pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.399, 6.403 e 6.415, caberá ao STF decidir sobre a validade da polêmica e substancial alteração ao procedimento do contencioso administrativo fiscal em âmbito federal, promovida pela inclusão do artigo 19-E à Lei 10.522/2002 por meio da Lei 13.988/2020, que estabeleceu que, em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, a discussão quanto à cobrança se resolverá favoravelmente ao contribuinte.
Pela sistemática anterior, que ainda vige com relação aos processos que tratam de pedido de restituição e/ou compensação, tem-se o denominado “voto de qualidade”, que significa a resolução do empate pelo voto do presidente — cargo este ocupado por um representante da Fazenda Nacional.
As discussões das ADIs centram-se fundamentalmente pela inconstitucionalidade formal da alteração legislativa, pautada no argumento da denominada “impertinência temática”, no sentido de que o tema tratado pelo dispositivo inserido pelo Projeto de Lei de Conversão nº 2 de 2020 não teria relação com o tema da Medida Provisória nº 899 de 2019, cujo escopo era a regulamentação da transação tributária.
Diferentemente do voto do relator, o então ministro Marco Aurélio, os votos da sessão realizada no último dia 24 de março foram alinhados por não acolher a tese de inconstitucionalidade formal, com entendimento de que o conteúdo relacionado ao processo administrativo fiscal federal guarda relação com a temática da MP 899, norteada pelo estabelecimento de medidas com o objetivo de reduzir o contingente litigioso fiscal.
Endereçando todos os argumentos relacionados à inconstitucionalidade pelo aspecto formal, em seu voto o ministro Alexandre de Moraes justificou o não acolhimento destacando que o dispositivo não promoveu alteração do sistema organizacional do Carf e que o projeto de lei respeitou os trâmites estabelecidos pela Constituição Federal, validado pelos Poderes Legislativo e Executivo.
Embora tenha seguido o mesmo entendimento, o ministro Luís Roberto Barroso manifestou sua posição pela necessidade de se reconhecer à União a possibilidade de questionar judicialmente o processo administrativo fiscal concluído pelo critério de desempate favorável ao contribuinte. A esse ponto, opuseram-se expressamente os ministros Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Cármen Lúcia.
Os autores das ADIs também lançaram mão de argumentos de cunho econômico — estratégia essa que tem sido muito difundida por parte das argumentações fazendárias perante a Corte Suprema —, como se o critério de desempate em favor do contribuinte impactasse de forma direta e negativa em relação ao potencial arrecadatório da União.
A esse respeito, o ministro Alexandre de Moraes rejeitou violação ao artigo 113[1] do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, por considerar indevida a presunção de alteração de receita e despesa sem um estudo detalhado, em que se assumiria que o caso estaria decidido mesmo antes de seu julgamento e pela ausência de qualquer expectativa de direito com relação à potencial receita.
A exemplo da formação de outros órgãos julgadores no âmbito do contencioso administrativo fiscal (estaduais, municipais e do Distrito Federal), o Carf é um órgão colegiado de composição paritária, formada por representantes fazendários e dos contribuintes. Diante disso e considerando os achados das investigações realizadas na denominada Operação Zelotes, em 2015, muitos questionamentos surgem quanto à real influência negativa ao fisco federal pela alteração do critério de desempate que, inclusive, levam aos recorrentes questionamentos a respeito da pertinência do contencioso administrativo e da própria existência e autonomia do Carf. Mas o que mostram os dados publicamente conhecidos nesse sentido?
Entre diversas demonstrações estatísticas apuradas entre 2017 e 2021, que inclusive foram destacadas pelo voto do ministro Alexandre de Moraes, os dados abertos do Carf[2] evidenciam que, em média, 80%[3] dos recursos são solucionados mediante votações unânimes, tendo alcançado seu maior patamar justamente no ano de início da vigência do critério de desempate favorável ao contribuinte: 88,7% dos recursos em 2020 foram julgados por unanimidade de votos dos conselheiros.
Os mesmos dados estatísticos evidenciam ainda que, em 2020, apenas 0,4% dos recursos foram julgados pelo critério de desempate favorável ao contribuinte — ano marcado pela paralisação dos julgamentos em torno de dois meses do início da quarentena imposta pela pandemia da Covid-19, acompanhada da limitação dos valores de alçada aos casos que poderiam ser julgados virtualmente: R$ 1 milhão alterado para R$ 8 milhões em agosto de 2020, R$ 12 milhões em janeiro de 2021 e R$ 36 milhões em março de 2021 — essa última limitação vigente até a publicação da Portaria do Ministério da Economia n° 3.125, em 11 de abril de 2022, que revogou as limitações de valor envolvido para o julgamento não presencial.
Em 2021, os recursos julgados mediante o critério de desempate favorável ao contribuinte somaram 1,6% dos casos julgados. Já os recursos julgados mediante a aplicação do voto de qualidade representavam uma média de 6,4% entre 2017 e 2019, reduzido a 1,9% no ano de 2020 e aumentado a 2,7% no ano de 2021.
Independentemente do critério de desempate, os dados estatísticos evidenciam que apenas uma ínfima parcela dos recursos tem a votação de seu julgamento determinada dessa maneira. A esmagadora maioria dos recursos é julgada de forma unânime (média de 80% nos últimos cinco anos), sendo a segunda colocada a modalidade de votação por maioria — que nos últimos cinco anos representou a média de 15,5%[4] dos recursos julgados.
Portanto, estatisticamente, o argumento de cunho econômico levantado pelos autores das ADIs não aparentam pertinência, inclusive levam à interpretação de que os votos de qualidade sempre seriam proferidos de forma favorável ao fisco federal. E o inverso também não é verdadeiro, isto é, presumir-se como regra que o empate de votos é ocasionado pelo posicionamento dos conselheiros representantes do contribuinte de forma desfavorável ao fisco federal.
O que se viabilizou por meio da inserção do artigo 19-E à Lei 10.522/2002 foi a consagração da proteção ao contribuinte aos casos em que, ainda no âmbito da discussão administrativa, não tenha como se garantir a presunção de certeza e liquidez do crédito tributário. Nas palavras do ministro Lewandowski em seu voto, o empate no julgamento administrativo do lançamento tributário evidencia que a administração pública não foi capaz de comprovar a conduta do contribuinte — e, havendo dúvida, a controvérsia deveria ser solucionada de forma favorável ao contribuinte.
Essa reflexão é reforçada em vista do fato de terem sido expressamente excepcionados os casos em que o contribuinte pleiteia a restituição e/ou compensação de direito creditório que entenda deter em face do fisco federal, ao quais o voto de qualidade permanece válido, na medida em que, em referidas situações, cabe ao contribuinte o ônus de provar o seu direito creditório, da mesma maneira em que cabe ao fisco o ônus da prova da pertinência do lançamento fiscal.
Todos os aspectos dessa discussão também levam, invariavelmente, às reflexões de consideração da estrutura do Carf e da própria pertinência de sua existência. O Carf é um órgão integrante do Ministério da Economia e independente da estrutura da Receita Federal, o que, somado à sua formação paritária submetida a regras e crivo específicos de seleção e remuneração de conselheiros, garante uma atuação autônoma como validador do lançamento tributário questionado pelo contribuinte.
O Carf também conta com um regimento que não somente lhe garante uma atuação autônoma, mas também possibilita a estruturação organizacional que, em regra, é determinada pelas cadeiras de conselheiros presidentes, ocupadas por representantes fazendários. A exemplo dessa autonomia, observa-se o estabelecimento de turmas extraordinárias dotadas de um procedimento mais sumarizado, visando a redução da quantidade de processos em virtude de sua complexidade e valores envolvidos de menor relevância.
E a organização visando à otimização de sua performance é uma característica da autonomia do Carf que nem sempre agrada aos contribuintes, a exemplo da utilização de portarias para designar a competência de determinadas matérias diversas à competência originária de determinadas seções julgadoras, como a recente Portaria CARF/ME 12.202 de 2021[5]. Portanto, ainda que seja um órgão paritário, não há como se desconsiderar que a autonomia organizacional permite aos representantes fazendários a determinação de procedimentos e de como os julgamentos serão processados.
Entretanto, mesmo diante de todas essas vertentes e particularidades, é majoritária a opinião de que a discussão administrativa é uma seara em que há espaço para que as discussões sejam realizadas com profundidade e complexidade técnica referente às questões tributárias, o que permite o saneamento de diversos aspectos que não só podem conduzir a uma significativa redução do contencioso, como também permite que as discussões e as partes estejam mais amadurecidas à discussão judicial, viabilizando ainda uma certa economia processual perante o Judiciário.
Em específico ao capítulo dedicado às discussões travadas por meio das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415, contando com cinco votos favoráveis e um desfavorável à manutenção do critério de desempate pró-contribuinte, o julgamento foi interrompido pelo pedido de vista manifestado pelo ministro Nunes Marques, sendo esperado que a discussão volte à pauta do STF ainda no primeiro de 2022.
E é nesse cenário de respeito institucional aos órgãos de julgamento administrativo e ao devido processo legislativo que a sociedade aguarda confiante o desfecho do tema na Corte Constitucional brasileira.
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[1] Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016)
[2] http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dadosabertos-202203final.pdf
[3] Reproduzindo os dados disponibilizados abertamente pelo CARF, temos o seguinte percentual de recursos julgados por votação unânime: (i) 71,1 % em 2017, (ii) 76,6% em 2018, (iii) 81,5% em 2019, (iv) 88,7% em 2020 e (iv) 78,9% em 2021.
[4] Reproduzindo os dados disponibilizados abertamente pelo CARF, temos o seguinte percentual de recursos julgados por votação em maioria: (i) 21,7 % em 2017, (ii) 16,6% em 2018, (iii) 13,3% em 2019, (iv) 9,1% em 2020 e (v) 16,9% em 2021.
[5] “Estende, temporariamente, para a Segunda e Terceira Seções de Julgamento, a competência para processar e julgar os recursos da Câmara Superior de Recursos Fiscais que versem sobre as matérias que especifica.”
Fonte: Jota