Ainda que a causa de pedir se relacione com a concretização de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, o Ministério Público não tem legitimidade para ajuizar ação civil pública que discuta relação jurídico-tributária.
Com esse entendimento, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a embargos de divergência para extinguir ação ajuizada pelo Ministério Público Federal com o objetivo de afastar exigência da Fazenda para a concessão de benefício tributário na aquisição de automóveis por portadores de deficiência física.
Por maioria de votos, o colegiado vetou tentativa de relativizar a incidência do artigo 1º, parágrafo único da Lei 7.347/1985, que veda o uso de ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos. O julgamento foi encerrado em 9 de fevereiro e o acórdão, publicado em 29 de março.
A ação foi ajuizada pelo MPF, depois de denúncia feita por portador de deficiência física que, segundo a Lei 8.989/1995, teria direito a comprar veículo com isenção de IPI.
Para gozar do benefício, o comprador deve comprovar a disponibilidade financeira ou patrimonial compatível com o valor do veículo a ser adquirido, conforme prevê o artigo 5º da Lei 10.690/2003.
Ao normatizar essa previsão, a Receita Federal passou a exigir que essa comprovação fosse feita pelo portador de deficiência de modo próprio e exclusivo — sem considerar a renda familiar. A previsão consta da Instrução Normativa 988/2009, já revogada.
Segundo o MPF, essa posição fazendária desvirtuou a isenção tributária oferecida aos portadores de deficiência física, impossibilitando o gozo do direito de locomoção. A norma ainda teria ferido os vetores constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
A ação civil pública foi ajuizada com pedido de obrigação de não fazer, no sentido de impedir a Fazenda de fazer condicionar a aquisição de veículos com isenção de IPI, por parte dos portadores de deficiência física à existência de disponibilidade financeira ou patrimonial própria.
Se é tributário, não pode
A maioria na 1ª Seção do STJ seguiu a posição do relator, ministro Francisco Falcão, ao aplicar o artigo 1º, parágrafo único da Lei 7.347/1985. O voto cita jurisprudência do STJ nesse sentido e ainda a tese definida em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 645.
O enunciado diz que “o Ministério Público não possui legitimidade ativa ad causam para, em ação civil pública, deduzir em juízo pretensão de natureza tributária em defesa dos contribuintes, que vise questionar a constitucionalidade/legalidade de tributo”.
Abriu a divergência a ministra Regina Helena Costa, que propôs uma diferenciação. Para ela, exigências tributárias podem revelar direitos individuais homogêneos, em relação aos quais a Constituição outorgou ao Ministério Público a legitimidade ativa para defender em juízo.
Da mesma forma, exigências tributárias podem, em tese, dificultar o exercício de direitos fundamentais, por interferir na liberdade e na propriedade dos cidadãos. E como as normas constitucionais que tratam de direitos fundamentais devem conviver com a atividade tributante, é aplicável o princípio da não obstância ao exercício de direitos fundamentais por via da tributação.
E é esse cenário que leva à conclusão de que é possível ao Ministério Público usar a ação civil pública como instrumento processual para a tutela de direitos transindividuais, ainda que a natureza do agravo em seu desfavor tenha origem tributária.
Apenas tributário?
Também divergiu o ministro Herman Benjamin, que seguiu a linha segundo a qual o objeto da ação do MP não é, propriamente, a questão tributária subjacente, mas sim o direito dos portadores de deficiência física à aquisição de veículos automotores com a concessão das isenções tributárias previstas em lei.
Ele destacou que a jurisprudência do STJ e do STF vêm relativizando a vedação da Lei 7.347/1985 para permitir que se possa, pela via da ação civil pública, defender direito e interesses coletivos de maior grandeza constitucional, mesmo que tangenciem o microssistema tributário na causa de pedir ou no pedido.
“No campo da proteção de direitos e interesses tutelados na Lei 7.347/1985 e na legislação esparsa sobre direitos supraindividuais deve-se considerar adequada a via processual da ação civil pública, mesmo que a matéria tributária — veiculada como fundamento não exclusivo, primário ou “puro sangue” do pedido (causa petendi) — integre a questão controvertida mais ampla”, defendeu.
Interpretação restritiva
A diferenciação proposta pela divergência não foi aceita pela maioria. Em voto-vista, o ministro Gurgel de Faria apontou que somente quando o pedido versar tema de natureza tributária — e não a causa de pedir — reconhece-se a ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública.
“O tema relativo à proteção e garantia da pessoa portadora de necessidade especial, como direito fundamental, aqui, não é o pedido principal, mas se relaciona com a causa de pedir. A matéria tributária representa o próprio pedido em si”, afirmou.
A ministra Assusete Magalhães votou na mesma linha, destacando que “é fora de dúvida que a pretensão versada neste feito é nitidamente tributária, visto que se objetiva afastar, em âmbito nacional, para fins de obtenção de isenção fiscal do IPI e IOF, a exigência de disponibilidade financeira ou patrimonial própria, por parte dos portadores de ‘deficiências físicas’, para a aquisição de veículos automotores”.
Resultado
Votaram com o relator, ministro Francisco Falcão, também os ministros Mauro Campbell Marques, Assusete Magalhães e Gurgel de Faria.
Ficaram vencidos a ministra Regina Helena Costa e o ministro Herman Benjamin.
Esteve impedido o desembargador convocado Manoel Erhardt. O ministro Sergio Kukina, por sua vez, esteve ausente. E não participou do julgamento o ministro Og Fernandes.
EREsp 1.428.611
Fonte: Revista Consultor Jurídico