Justa ou não, cobrança é originária de relação de direito privado, não podendo ser confundida com tributos
A lamentável tragédia ocorrida em Petrópolis (RJ) na última semana tem chamado a atenção para a cobrança do laudêmio, referido pela imprensa como “imposto do príncipe”, que é revertido para a “família imperial”. Cabe aqui traçar algumas linhas sobre o instituto jurídico por trás disso.
A despeito de não existir como “família imperial” para o Direito brasileiro desde a proclamação da República, em 1889, os descendentes de Dom Pedro II são acionistas e dirigentes da Companhia Imobiliária de Petrópolis, que é a efetiva proprietária de parte dos imóveis situados em Petrópolis, tendo o domínio útil sido entregue aos donos dos imóveis pelo instituto jurídico da enfiteuse.
Ou seja, os donos dos imóveis (enfiteutas ou foreiros) podem agir como proprietários — podem usar, fruir e dispor dos bens — estando, contudo, sujeitos, a duas limitações: o pagamento anual do foro (adicionalmente ao custo dos impostos sobre a propriedade do bem: IPTU ou ITR); e o pagamento do laudêmio a cada transmissão do domínio útil (adicionalmente ao custo dos impostos de transmissão incidentes: ITBI ou ITCMD).
A enfiteuse não foi mantida no Código Civil de 2002, tendo sido proibida a constituição de novas enfiteuses ou subenfiteuses (art. 2038), porém permanece válida para aqueles bens que já se encontravam nessa situação, sendo disciplinada pelo Código Civil de 1916, cujo artigo 679 prevê que o “contrato de enfiteuse é perpétuo”.
Entre as disposições sobre a enfiteuse, está o direito de preferência da aquisição do domínio útil pelos proprietários, em igualdade de preço e condições. Caso não seja exercido em 30 dias, o enfiteuta pode transmitir a terceiros, devendo pagar o laudêmio de 2,5%, caso outro valor não tenha sido estipulado no contrato de constituição do domínio útil.
De acordo com balanços da Companhia Imobiliária de Petrópolis, a receita anual de 2019 e 2020 girou em torno de R$ 5 milhões, dos quais, cerca de R$ 4,8 milhões têm origem na área operacional. A empresa não divulga detalhadamente o faturamento proveniente de laudêmio ou mesmo do foro anual.
Cabe esclarecer que chamar o laudêmio de “imposto do príncipe” é impreciso: esses valores não têm caráter tributário, já que sua origem é uma relação contratual, de direito privado. Sua destinação é para a empresa proprietária dos imóveis e não para a administração pública. Ainda que, no caso da Companhia Imobiliária de Petrópolis, seus acionistas sejam descendentes de antigos detentores do poder no Brasil, não se pode confundir tal valor com tributos de qualquer natureza.
Da mesma forma, exigir que tais recursos sejam aplicados em melhorias urbanísticas, como a prevenção de enchentes e desabamentos, parece não guardar relação com a natureza privada desse dinheiro, cuja destinação deve ser decidida pela administração da companhia.
Com isso, fica claro que o modelo jurídico existente em Petrópolis é legal. Contudo, restam os questionamentos: a cobrança desses valores é justa? Deve permanecer?
Os imóveis situados na área da antiga Fazenda Imperial são de propriedade da Companhia Imobiliária de Petrópolis, cujo objeto social é a exploração de bens e direitos reais. Sobre tais imóveis está constituída a enfiteuse, que, como explicado, dá origem aos pagamentos de foro anual e laudêmio.
Portanto, trata-se de uma questão de propriedade privada, regida pelo Direito Civil.
A propriedade privada é resguardada pela Constituição Federal, como direito fundamental do homem, em seu artigo 5º, inciso XXII. O inciso XXIII prevê que a propriedade deve respeitar a sua função social, ou seja, em linhas gerais, deve ter um aproveitamento racional e adequado, com utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, e, sendo urbana, deve atender às exigências fundamentais de ordenação das cidades expressas em seu plano diretor.
O desrespeito à função social da propriedade pode gerar sanções, inclusive a desapropriação do bem. A forma como vêm sendo utilizados os imóveis em Petrópolis — via cessão de domínio útil — permite que os imóveis sejam devidamente utilizados, afastando as hipóteses de não cumprimento de sua função social.
Ao buscar um imóvel situado nessa região, o interessado deve ter acesso às informações referentes ao domínio útil, adquirindo o imóvel ciente do regime jurídico vigente e dos custos envolvidos, sendo livre para decidir pela aquisição ou não do bem.
Com isso, com base no ordenamento jurídico vigente, no respeito aos direitos fundamentais e ao princípio da liberdade econômica, acredito ser uma forma legítima de exploração da propriedade privada, ainda que bastante custosa para os titulares do domínio útil.
O Código Civil de 2002 poderia ter trazido uma regra de transição que permitisse a substituição gradativa da enfiteuse pelo uso de modelos de negócio mais condizentes com os dias atuais, ao invés de perpetuar a vigência de um instituto que, há muito, havia caído em desuso.
Esse não é um privilégio da “família imperial”: vale lembrar que há a enfiteuse sobre terras públicas pertencentes à União — os chamados “terrenos de marinha”. Conforme dispõe o Decreto-lei 3438/41, “são terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 metros, medidos para a parte de terra, do ponto em que passava a linha do preamar médio de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.”
Sem entrar no ponto referente às alterações sofridas nessa linha do preamar médio desde 1831 até os dias atuais, temos que muitos imóveis costeiros estão situados em terrenos de marinha e sujeitos aos mesmos pagamentos: foro anual e laudêmio nas transmissões.
Justos ou não, são institutos existentes em nosso ordenamento jurídico e amplamente utilizados.
Por Luciana Reis do Rosário Pires
Fonte: Jota