Por Artur Muxfeldt, Daniel Zugman, Frederico Bastos e Isac Costa
Em 2020, Vitalik Buterin, figura central do projeto da criptomoeda Ethereum, doou o equivalente a US$ 1 bilhão em criptoativos para o combate ao coronavírus na Índia. Esses criptoativos, por seu turno, haviam sido doados a Buterin pelos criadores da meme coin Shiba Inu e representam um curioso ativo digital associado à recorrente imagem de um cachorrinho, sem utilidade econômica específica e com alta volatilidade nos preços. Após a doação de Buterin, houve desvalorização de 60%.
A propriedade de criptoativos decorre de registros em uma rede que contém cópias dos pseudônimos dos usuários, que funcionam como endereços para envio e recebimento, e do histórico de transações. Fala-se, assim, de um registro distribuído (distributed ledger), também referido como rede blockchain.
Para que um usuário possa "acessar" seu saldo e autorizar transações, deve dispor de um par de números, uma chave pública e uma chave privada, que estão associados a uma "carteira" (wallet). Em uma analogia imperfeita, assim como você tem um endereço de e-mail e uma senha para poder enviar mensagens a outras pessoas na internet, você deve ter uma chave pública e uma chave privada para realizar transações com criptos.
Um ditado conhecido é: "Se você não tem a chave privada, você não tem o criptoativo". Isso porque não existem mecanismos de recuperação da chave privada e a propriedade é uma questão de fato, e não de direito: só quem tem a chave privada consegue dispor do saldo em criptoativos.
Um dos maiores desafios para as autoridades tributárias e de prevenção à lavagem de dinheiro é a dificuldade de identificação dos titulares dos criptoativos, uma vez que o acesso à rede blockchain se dá por meio de pseudônimos, com o uso de chaves criptográficas. Algumas exchanges de criptoativos, ambientes eletrônicos que viabilizam a sua negociação com maior segurança, exigem dados dos seus clientes para a criação de contas e, nesses casos, é possível requerer desses intermediários as informações necessárias para fiscalização — o que a Receita Federal previu na IN nº 1.888/2019 para viabilizar a cobrança de IR — e constrição de patrimônio, como tem sido praticado pelo Poder Judiciário ao enviar ofícios para as exchanges em processos de execução.
Transmissão não onerosa de criptomoedas
Do ponto de vista sucessório e tributário, criptoativos são tratados como ativos financeiros, bens móveis tais como ações ou títulos de crédito, sem qualificação jurídica específica no Brasil e em outros países. Uma exceção é El Salvador, que recentemente adotou o bitcoin como moeda de curso legal.
Nas doações em vida, a transmissão é simples: trata-se de transferência direta entre carteiras (peer to peer) ou via exchange, sem a participação de instituições financeiras e procedimentos burocráticos e, ainda, sem incidência de IOF no caso de doação transnacional, por não se tratar de operação de câmbio.
Na hipótese de sucessão causa mortis envolvendo criptoativos, basta utilizar de imediato as chaves criptográficas disponíveis, sem a necessidade de apresentação de certidão de óbito, comunicação a instituições financeiras e formalização de inventário para que herdeiros possam assumir o controle das contas do proprietário falecido.
Todavia, as características que tornam os criptoativos atraentes podem aumentar o risco de que herdeiros não tenham acesso aos acervos criptográficos. Se não houver uma forma de obter a chave privada ou se o falecido não informar a ninguém acerca da propriedade dos criptoativos, não será possível acessá-los e os valores estarão perdidos para sempre.
Logo, é recomendável que o titular documente como acessar esses ativos em sua eventual falta ou incapacidade. Isso pode assegurar que os criptoativos não sejam perdidos na transmissão do proprietário original para seus herdeiros.
Aspectos tributários: base de cálculo e fiscalização
Conforme a já mencionada IN RFB nº 1.888/2019, há incidência de IR sobre ganho de capital na alienação de criptoativos, devendo ocorrer a comunicação pela exchange e pelo contribuinte do valor equivalente em reais associado às transações.
No caso de doações e heranças, a ausência de comunicação obrigatória às autoridades fazendárias dificulta a cobrança de ITCMD, o Imposto sobre Doações e Heranças (cuja alíquota pode chegar a 8%), que incide sobre o valor venal (valor de mercado) do bem herdado ou doado.
No estado de São Paulo, já foi, inclusive, apresentado o Projeto de Lei nº 834/2019, atualmente em trâmite, que pretende incluir expressamente na legislação paulista a incidência do ITCMD sobre as operações de doações e heranças de criptoativos. Não há, contudo, disposições sobre forma de identificação de titularidade ou apuração da base de cálculo.
A determinação do valor de criptoativos com maior liquidez, caso do bitcoin e do ether, por exemplo, é problemática e a situação é ainda mais grave para milhares de criptoativos existentes que têm baixa liquidez ou que são negociados apenas em exchanges sem sede no Brasil.
Além disso, todos os criptoativos estão sujeitos a movimentos abruptos nos preços, causados possivelmente por manipulação ou motivos fúteis — os posts de Elon Musk no Twitter são um exemplo nesse sentido, seja quando divulgou que a Tesla adquiriu bitcoins e que passaria a aceitá-las como pagamento —, o que fez disparar o valor da cripto — seja quando mudou de ideia, poucas semanas depois, e acusou o bitcoin de ter um impacto ambiental negativo em virtude dos gastos de energia para sua mineração, o que derrubou a cotação do ativo.
Apesar da atual indefinição sobre o tema, incide ITCMD na transmissão não onerosa de criptoativos. Cabe a cada contribuinte refletir sobre a forma mais fidedigna de apuração da base de cálculo, conforme o contexto da transação, o momento e a espécie de criptoativo. Enquanto isso, cabe ao Estado tentar resolver o quebra-cabeças criado pela tecnologia blockchain: como associar os endereços das transações a contribuintes para poder tributar operações com criptoativos.
Fonte: CONJUR