A Receita Federal está acompanhando de perto o mercado de cartões de benefícios flexíveis e os contribuintes correm o risco de serem autuados caso não controlem os gastos dos trabalhadores. É preciso, segundo informou o órgão ao Valor, determinar com precisão em que esses valores foram utilizados para a empresa saber se haverá ou não tributação.
Os cartões flexíveis ganharam força com a pandemia da covid-19. Atualmente, o mercado de benefícios em geral movimenta cerca de R$ 150 bilhões ao ano e, além das grandes empresas – Alelo, Sodexo, Ticket e VR -, conta com startups como Caju, Flash e Vee (agora Swile).
Por meio desses cartões, é possível liberar ao trabalhador valores para alimentação, refeição, cultura, saúde, transporte, combustível e educação. A empresa pode direcionar quantias para determinadas categorias ou deixar o saldo livre. Com tantas possibilidades, alerta a Receita, é preciso analisar a natureza jurídica de cada benefício.
“Em relação aos valores pagos pelas empresas a seus funcionários por meio de cartões de benefícios flexíveis, cabe esclarecer que esses valores, como regra geral, são tributáveis. Só não o serão, se houver disposição legal em sentido contrário”, diz a Receita Federal em nota enviada ao Valor.
O órgão cita, por exemplo, que valor recebido a título de vale-cultura é isento do Imposto de Renda – inciso XXIII do artigo 6º da Lei nº 7.713, de 1988. Porém, acrescenta, gasto com veterinário “não possui previsão legal isentiva”. Segundo a Receita, é necessário, portanto, “que haja controle dos diversos valores pagos aos funcionários”.
O tema ainda é novo, mas advogados relembram precedentes sobre os chamados cartões de incentivo, que começaram a ser usados no início do anos 2000. Tanto a Justiça do Trabalho como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) consideraram esses valores de natureza salarial. Ou seja, sujeitos ao recolhimento de encargos trabalhistas e tributos.
Representantes das startups que oferecem cartões flexíveis, como a Flash e a Caju, defendem que, agora, a legislação e a tecnologia são outras. “Sempre que se referem aos cartões de incentivo dos anos 2000, eu faço questão de ressaltar que temos hoje um produto totalmente diferente e com respaldo legal”, diz Eduardo del Giglio, CEO da Caju.
A possibilidade começou a ganhar corpo com o artigos 457 e 458 da Lei da Reforma Trabalhista (nº 13.467 de 2017). Os dispositivos dizem, expressamente, que não podem ser considerados como de natureza remuneratória os valores pagos de auxílio-alimentação, educação, transporte, assistência médica e vale-cultura, entre outros.
Apesar dessa previsão, dizem advogados, ainda não existe segurança de como a fiscalização e a Justiça do Trabalho vão se manifestar porque há muito pouca regulamentação.
Caso um valor seja considerado de natureza salarial, haverá reflexos em verbas trabalhistas – 13º salário, férias e FGTS. Na área previdenciária, incidiria contribuição patronal, que pode chegar a 28,8%. E teria que ser retido, pelo empregador, Imposto de Renda.
Caio Alexandre Taniguchi, sócio do TozziniFreire Advogados, lembra que, nos anos 2000, os cartões eletrônicos de incentivo também eram flexíveis. O beneficiário poderia usar valores em postos de combustível, lojas de conveniência e até trocar por bens e serviços em lojas virtuais.
Contudo, afirma, o uso desses cartões foi desvirtuado e algumas empresas passaram a pagar parte da remuneração por meio deles para não haver reflexos trabalhistas e recolhimento de tributos. “A Receita realizou uma grande operação e lavrou milhares de autuações fiscais e centenas de representações fiscais para fins penais para a apuração de crime contra a ordem tributária e de sonegação de contribuições previdenciárias”, diz Taniguchi.
Apesar de ser um outro momento, o advogado afirma que as empresas devem tomar cuidado. A principal recomendação é limitar a utilização desses cartões para determinados fins e solicitar das empresas de cartões os extratos mensais dos funcionários. “Não tenho dúvidas que a Receita vai chegar nesses benefícios. Basta uma ação reclamatória trabalhista pedindo a integração desses benefícios no salário”, diz.
O advogado trabalhista Luiz Antonio dos Santos Junior, sócio do Veirano Advogados, confirma o risco. Benefícios sem previsão legal, como combustível e academia, afirma, trazem ainda mais preocupação. Ele recomenda que as empresas estabeleçam na sua política interna ou, de preferência, em normas coletivas, que esses benefícios despendidos não integram o salário e não podem ter encargos trabalhistas e previdenciários.
As chances de litígios são grandes, na opinião do advogado Felipe Richter, sócio da área tributária do Veirano. “Muitas empresas já estão atentas ao risco, em razão do histórico já existente, e já veem a adoção desses cartões flexíveis com cautela”, diz.
Para Eduardo del Giglio, CEO da Caju, contudo, além da legislação trabalhista, existe toda uma tecnologia hoje que dá mais segurança às empresas. O sistema, acrescenta, permite direcionar o dinheiro depositado para categorias selecionadas pela empresa, em cumprimento à CLT e convenções coletivas de trabalho. “Criamos carteiras separadas. É como se fosse um dinheiro carimbado, o que nos permite ter mais segurança”, diz.
Yara Leal, consultora da Flash Benefícios, afirma que a empresa tem um leque amplo de benefícios. “Alguns com muita segurança jurídica, outros que trazem algum risco”, diz. Segundo ela, cada empresa customiza os benefícios da forma como achar melhor. Além da Lei da Reforma Trabalhista, ela cita leis específicas e decisões judiciais que podem dar mais segurança para as companhias.
Entre os mais seguros estão os de alimentação ou refeição (previstos no artigo 457 da CLT e na Lei nº 6.321, de 1976, que trata do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT) e os direcionados à cultura (Lei nº 12.761, de 2012, que criou o vale-cultura) e educação (artigo 28 da Lei n º 8212, de 1993).
Já com o benefício de mobilidade, destinado geralmente para gastos em aplicativos, afirma, existe algum risco. Isso porque a Lei nº 7.418, de 1985, diz que os valores devem ser destinados ao transporte coletivo público. Ela destaca, porém, decisões do Carf e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que reconhecem reembolso com deslocamento como de natureza indenizatória.
Willian Gil, diretor jurídico da Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT), que reúne 16 associadas, entre elas Sodexo, Alelo e Ticket, afirma que a ideia é investir em inovação com segurança. E que todo benefício, como regra, deve ter uma destinação específica. “O funcionário não pode ter um auxílio-alimentação e conseguir pagar streaming”, diz.
Para ele, ainda existem riscos em determinados benefícios. Ele dá como exemplo o auxílio-educação. Apesar de estar previsto na Lei da Reforma Trabalhista, não há detalhes dos critérios a serem seguidos para que não seja considerado de natureza remuneratória. “A ausência de critérios muito claros abre margem para a fiscalização e faz com que segurança jurídica seja desafiada”, afirma.
O Consultor Luiz Antonio dos Santos Junior adverte que as empresas devem prever em normas coletivas que benefícios não integram o salário.
Procurada pelo Valor, a Vee, agora Swile, preferiu não se manifestar. A Alelo e a Ticket informaram que se manifestariam via ABBT. Sodexo e VR não deram retorno.
Fonte: Valor Econômico