Congresso tenta viabilizar programa de parcelamento, mas Executivo defende ampliar uso da transação tributária
A degradação da economia brasileira em decorrência da pandemia da Covid-19 reacendeu uma discussão recorrente no país em tempos de crise: a necessidade ou não da edição de um novo Refis, programa amplo de parcelamento de débitos tributários com a Receita Federal e com a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que vem sendo implementado pelo menos nas últimas duas décadas, em média a cada cinco anos.
Desta vez, a iniciativa tem sido capitaneada pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), com apoio de parlamentares aliados, mas encontra resistência por parte do Executivo, principalmente do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Em fevereiro, Pacheco pediu a Guedes para reeditar o Programa Especial de Regularização Tributária (PERT), popularmente conhecido como Refis, disciplinado pela Lei nº 13.496/2017. Na ocasião, o presidente do Senado disse que já havia protocolado, em setembro do ano passado, o Projeto de Lei n° 4728/2020 para viabilizar essa negociação. O PL recebeu apoio da Fecomércio, da Associação Brasileira de Telesserviços e da Confederação Nacional do Comércio.
Até hoje, no entanto, Legislativo e Executivo ainda não chegaram em um acordo que atenda a todos os interesses em jogo. Em diversas declarações recentes, Guedes reforçou que prefere continuar a “desenhar uma nova ferramenta, que é a transação tributária”, em vez de elaborar um Refis. Isso porque a renúncia fiscal envolvida nos programas de parcelamento seria maior do que na modalidade de transação. Além disso, incentivaria o devedor contumaz. A mesma posição é defendida pela Receita Federal e a PGFN.
“O modelo de Refis é altamente injusto para o resgate da atividade econômica. Ele é defasado, não se usa em lugar nenhum do mundo. Compreendo que, em algumas circunstâncias, excluir parte dos encargos para permitir a equalização dos passivos é, do ponto de vista da justiça fiscal, muito honesto. E a transação permitiu isso. Agora, não é justo franquear um modelo de desconto para o contribuinte que não precisa”, diz o procurador da Fazenda João Grognet, coordenador-geral de Estratégias de Recuperação de Créditos da PGFN.
Em posicionamento enviado ao JOTA em meados de abril, via assessoria de comunicação, a Receita Federal disse que ao longo da pandemia adotou diversas medidas que foram suficientes para amenizar os efeitos econômicos do momento, o que descarta a necessidade de um novo Refis.
“Aliado ao instituto da transação tributária foram editados outros atos, como a suspensão da cobrança de prazos processuais, a exclusão de contribuintes de parcelamentos, dentre outros. Adicionalmente, também foram prorrogadas a vigência das certidões negativas e positivas com efeito de negativa, os prazos de entrega de declarações, e os prazo de vencimento de tributos”, disse a Receita.
Momento excepcional pede novo Refis, dizem especialistas
Advogados e especialistas consultados pelo JOTA apontam que o instrumento da transação tributária é, de fato, o melhor caminho para se consolidar uma nova relação entre fisco e contribuinte, a exemplo de países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Contudo, como o instrumento ainda é novo, ele apresenta limitações, e, pela situação crítica da economia do Brasil, a edição de um novo Refis seria bem-vinda neste momento.
“Eu, particularmente, sempre fui crítica de parcelamentos nesse modelo do Refis, porque incentiva o mau pagador a fazer a gestão da sua dívida à luz da possibilidade do parcelamento. Mas, neste momento, não podemos fazer uma análise descontextualizada da pandemia”, diz Tathiane Piscitelli, professora de Direito Tributário na Fundação Getulio Vargas (FGV).
“Por conta desse período, temos no país um nível de desemprego recorde, ocasionado também por uma crise nas empresas. E essa crise está relacionada ao desaquecimento da atividade econômica, que traz consigo uma crise tributária. Então por essa razão, somada ao fato de que a transação não tem contemplado os débitos não inscritos em dívida ativa, o novo Refis pode ser positivo”, completa.
A transação tributária foi implementada a partir da Lei nº 13.988 de abril de 2020, que prevê a possibilidade de negociação entre contribuintes e a PGFN, a partir do portal Regularize-se. Atualmente, são oito as transações disponíveis para os contribuintes.
Ao contrário do Refis, na transação tributária a depreciação dos encargos das dívidas não é a mesma para todos os contribuintes. Outra diferença é que, ao contrário do Refis, que normalmente engloba todos os débitos com o fisco, na transação são negociados apenas os débitos já inscritos em dívida ativa, que estão sob gestão da PGFN, ou de contencioso administrativo de pequeno valor, a cargo da Receita Federal.
“A transação é mais real, mas não significa que seja positiva para todos os contribuintes. Porque o contribuinte que tem capacidade de pagamento, mas busca manter seus débitos tributários em dia, não tem grandes benefícios com a transação tributária, porque não demonstra necessidade do socorro. Apesar de no mundo ideal a transação tributária ser mais equilibrada, porque avalia caso a caso, no fim do dia não abrange todos os contribuintes possíveis, diferentemente do Refis”, avalia Emily Costa, advogada tributarista no WFaria Advogados.
Segundo boletim informativo da Fazenda Nacional, até fevereiro deste ano, os diversos editais de transação abertos permitiram o fechamento de 261 mil acordos dos débitos inscritos em dívida ativa, representando R$ 81,9 bilhões. Já no caso do contencioso administrativo de pequeno valor foram 2.665 mil negociações, atingindo R$ 37,5 milhões em débitos. A título de comparação, no último Programa Especial de Regularização Tributária (PERT), em 2017, aderiram 740 mil contribuintes, com reduções de juros que chegaram a 90%, de acordo com dados da Receita Federal.
“A questão da transação é que as reduções não têm sido suficientes para que uma empresa que passou pela pandemia consiga se recuperar. As condições estabelecidas na lei não necessariamente atendem a todos, principalmente porque a redução não pode entrar no valor principal da dívida. Nesse sentido, os juros e multas que incidiram no período da pandemia nunca vão ser tão altos a ponto de chegar ao teto do desconto. Por isso entendo que, para essas situações, é sim importante que venha um Refis”, afirma André Oliveira, tributarista no Castro Barros Advogados.
Na avaliação do tributarista Igor Mauler, membro da comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, para que um novo programa de Refis seja um aliado da transação tributária é necessário que o projeto de lei seja bastante generoso nos descontos, com negociações, inclusive, com estados e municípios.
“Na minha visão, um novo Refis seria útil, bom para a economia, porque não adianta ter empresas irregulares que não podem, por exemplo, participar de licitações e tomar crédito junto a bancos de fomento. Mas o Refis precisa ser generosíssimo, com prazo longo para pagamento e uma redução drástica de multas e juros mesmo para quem opta por pagamento a prazo. Além disso, o Congresso precisa pensar em um grande pacto para estender o Refis a estados e municípios”, diz.
A professora da FGV Tathiane Piscitelli, destaca também que o Congresso Nacional já deveria estar com um projeto de lei mais consolidado para implementar o novo Refis, uma vez que a pandemia já está em curso há mais de um ano e as empresas precisam de um alívio no fluxo de caixa.
Ampliar transação tornaria Refis desnecessário
Parte dos especialistas ouvidos pelo JOTA defende que o Executivo e Legislativo poderiam, em vez de discutir um novo Refis, debater propostas para ampliar as possibilidades de uso da transação tributária, a partir do desenho de novos editais, principalmente para teses discutidas no contencioso administrativo e no Judiciário.
“Há 20 anos o Brasil experimenta o Refis. Mas isso causa também um efeito perverso, em que empresas deixam de pagar seus tributos esperando o parcelamento. O que queremos é que tudo seja mais institucionalizado, por isso que a lei de transação foi interessante, porque ela criou mecanismos mais institucionais, não esporádicos. Não estamos trabalhando com remendo. É possível trabalharmos no sentido da transação, temos incentivado essa postura por parte do fisco para ampliar os mecanismos de transação. A lei já define alguns parâmetros que podem ser aperfeiçoados”, afirma Edson Vismona, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO).
Carla Mendes, pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper e advogada no Mannrich e Vasconcelos Advogados, sugere que é possível aprofundar as modalidades de transação para que ela se torne atrativa aos demais contribuintes, que ainda têm o Refis à vista, a partir de um debate com a sociedade sobre as métricas para o cálculo feito pela PGFN para chegar à capacidade de pagamento do contribuinte.
“No meu grupo de pesquisa, iniciamos um debate para entender se a fórmula de capacidade de pagamento está de fato demonstrando a situação financeira de cada contribuinte. Esse cálculo precisa ser debatido para de fato entendermos, como sociedade, se ele está refletindo a realidade ou subdimensionado a capacidade de pagamento”, afirma.
De acordo com o procurador da Fazenda João Grognet, a PGFN está disposta a discutir se as transações precisam de ajustes, mas não considera que isso deva ser feito a partir da edição de um novo Refis. “Para dar desconto em débitos tributários, a Constituição e o próprio Código Tributário Nacional dizem que é necessário ter critério para não criar injustiças. E como você dá desconto com critério? dentro da transação tributária”.
Grognet chama atenção, ainda, para a necessidade de que o Congresso, caso decida pela edição de um novo Refis, demonstre qual será a fonte de compensação de receita, uma vez que, contribuintes que não teriam desconto com a transação tributária, poderão ter com o programa de parcelamento.
“A Lei de Responsabilidade Fiscal diz que se for renunciar receita [dando descontos para débitos com possibilidade de recuperação] é necessário um mecanismo de compensação. Indicar quanto vai representar de renúncia de receita e de onde vai sair essa compensação. E isso não parece estar na pauta do Congresso”, avalia.
Fonte: Jota