Concomitância entre multas isoladas e de ofício após MP e súmula do Carf

Retomaremos nesta coluna o tema das multas aplicadas no âmbito das autuações fiscais federais, com ênfase na questão da concomitância de multas isoladas decorrente do não recolhimento dos valores devidos, a título de estimativas mensais de IRPJ e CSLL [1] (artigo 44, II, da Lei nº 9.430/96), e de multas de ofício, cobradas em razão da falta de pagamento/recolhimento, falta de declaração ou declaração inexata do tributo (artigo 44, I, da Lei nº 9.430/96).

Entretanto, faremos um corte metodológico, uma vez que analisaremos aqui como a jurisprudência tem se posicionado acerca da aplicabilidade da Súmula Carf nº 105, após a edição da MP nº 351/2007 (convertida na Lei nº 11.488/2007), sem entrar na discussão meritória acerca da possibilidade de aplicação conjunta das multas.

Contextualizando o debate, a Lei nº 9.430/96 extinguiu o regime mensal de apuração do IRPJ (substituindo-o pelo trimestral), mas possibilitou às empresas optantes do lucro real realizarem recolhimentos mensais calculados sobre bases estimadas, a título de antecipação do tributo que será devido após fato gerador, os quais serão compensados após o término do período de apuração, e verificado se haveria ainda saldo positivo de tributo a ser recolhido, ou saldo negativo, a ser compensado nos exercícios subsequentes.

Desse modo, não adimplindo as estimativas mensais de IRPJ e CSLL, bem como não pagando os mesmos tributos após o término do período de apuração, os contribuintes recebiam duas sanções distintas, as quais eram objeto de contestação no âmbito do Carf.

Ao longo dos anos, três correntes de entendimento, acerca da relação entre essas duas sanções, se desenvolveram naquele conselho, como bem sumarizadas no Acórdão CSRF nº 9.101-001.261 [2]. A primeira entendia que a imposição da multa isolada independia do resultado apurado no encerramento do exercício, devendo sempre ser aplicada sobre o valor da estimativa não recolhida; a segunda entendeu que, quando aplicada depois do levantamento do balanço, a base de cálculo da multa isolada deveria ser a diferença entre o lucro real apurado e a estimativa obrigatória recolhida, quando não estiver acompanhado concomitantemente com a multa de ofício; e a terceira, no sentido de que encerrado o ano-calendário, não caberia aplicar a multa isolada por não pagamento das estimativas, pois elas ficariam absorvidas pelo resultado apurado no final do período, sujeitando-se à multa de ofício.

A terceira corrente acabou por prevalecer amplamente no âmbito do Carf [3], no sentido de que uma vez finalizado o período de apuração, a base imponível da penalidade desapareceria, já que absorvida pelo crédito tributário constituído, pois as estimativas nada mais seriam do que o recolhimento antecipado do tributo que só nasceria posteriormente. Nessa linha, aplicar-se-ia o princípio da consunção entre essas sanções, de modo a ser cobrada apenas a multa de ofício devida, após o término do exercício.

Tamanha a consolidação do entendimento, a matéria foi objeto da Súmula Carf nº 105, verbis: “A multa isolada por falta de recolhimento de estimativas, lançada com fundamento no artigo 44 § 1º, inciso IV da Lei nº 9.430, de 1996, não pode ser exigida ao mesmo tempo da multa de ofício por falta de pagamento de IRPJ e CSLL apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício”.

Não obstante, a Lei nº 9.430/96 sofreu diversas alterações, dentre as quais deve-se destacar a Lei nº 11.488/2007, verbis:

Lei 9.430/96 – redação original:

“Artigo 44 — Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas, calculadas sobre a totalidade ou diferença de tributo ou contribuição:

I. de 75%, nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, pagamento ou recolhimento após o vencimento do prazo, sem o acréscimo de multa moratória, de falta de declaração e nos de declaração inexata, excetuada a hipótese do inciso seguinte;

§ 1º. As multas de que trata este artigo serão exigidas:

I. juntamente com o tributo ou a contribuição, quando não houverem sido anteriormente pagos;

IV. isoladamente, no caso de pessoa jurídica sujeita ao pagamento do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, na forma do artigo 2º, que deixar de fazê-lo, ainda que tenha apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente;”

Redação após a Lei nº 11.448/2007:

“Artigo 44 —  Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:

I. de 75% sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata;

II. de 50%, exigida isoladamente, sobre o valor do pagamento mensal:

b) na forma do artigo 2º desta lei, que deixar de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente, no caso de pessoa jurídica.”

Essa alteração, conforme estabelecido na exposição de motivos da MP nº 351/2007, teve como finalidade expressa “reduzir o percentual da multa de ofício, lançada isoladamente, nas hipóteses de falta de pagamento mensal devido pela pessoa física a título de carnê-leão ou pela pessoa jurídica a título de estimativa”.

A despeito da exposição de motivos mencionada acima, diversos precedentes do Carf passaram a entender que a Súmula Carf nº 105 teria sido superada pela edição da Lei nº 11.488/2007, que alterou a redação do artigo 44 da Lei nº 9.430/96, não se aplicando a fatos geradores posteriores à sua vigência. A partir da adoção de premissa da inaplicabilidade da súmula (de observância obrigatória pelos conselheiros), têm-se entrado na análise do mérito da questão, negando-se a aplicação da consunção entre as sanções.

O Acórdão nº 1201-003.581 [4] (no mesmo sentido, Acórdão nº 1201-003.615 [5]) pontua que a redação da alínea “b” do inciso II do artigo 44 estabeleceria “literalmente” que a multa tratada incidiria de forma autônoma, sobre o valor dos pagamentos mensais, sem a existência de concomitância. Também no Acórdão nº 1402-004.361 [6], aduz-se a superação da súmula pela Lei nº 11.488/2007, aduzindo na sequência que, como as multas não teriam a mesma hipótese de incidência, “não há a barrar a imposição concomitante da multa isolada com a multa de ofício [7]“. Em ambos, não há nenhum cotejo analítico entre a redação original e modificada do artigo 44, mas simplesmente se assume a alteração substancial da norma, frisando trechos da nova redação que são idênticos à redação original.

Por sua vez, o Acórdão nº 1402-004.537 [8] aduz que a Lei nº 11.488/2007 teria deixado clara a intenção do legislador de aplicação simultânea das multas, ao usar a expressão “sobre o valor do pagamento mensal”, no artigo 44, II. Não obstante, a redação original já fazia referência ao artigo 2º da Lei nº 9.430/96, que trata dos pagamentos mensais de estimativas, de modo que não fica claro como essa redação alteraria o conteúdo da norma.

No Acórdão nº 1302-004.332 [9], o redator designado pontua que a Lei nº 11.488/2007 contemplou explicitamente a possibilidade de imposição cumulada das penalidades, sob os argumentos de que: 1) não se utiliza da partícula alternativa “ou” para qualificar as sanções ali descritas; 2) não se vincula a multa isolada à multa de ofício, como fazia o § 4º da Lei 9.430/96 em sua redação original; e 3) se afirma textualmente a exigência da penalidade isolada, mesmo se apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa. Ora, novamente, os argumentos não cotejam analiticamente as duas redações, pois: 1) tampouco a redação original utilizou a partícula “ou”; 2) não há qualquer vinculação da multa de ofício à isolada — em rigor, ambas são multas cobradas por lançamento de ofício, mas apenas uma delas é cobrada “isoladamente” do tributo; e 3) a redação acerca da apuração de prejuízo fiscal e base negativa é idêntica à original.

Destaque-se, também, o Acórdão nº 1401-004.266 [10] (no mesmo sentido, Acórdão nº 1401-004.267 [11]). Nele, após confrontar as duas redações do dispositivo em comento, afirma que “não se verifica, exceto em relação ao percentual a ser aplicado nos casos de multa isolada, qualquer alteração substancial nos dispositivos no que tange à hipótese de incidência e à base de cálculo da penalidade em apreço”, contrariando diretamente os acórdãos mencionados acima. Não obstante, conclui que não se aplicaria ao caso a Súmula nº 105, por esta se referir à redação original do artigo 44, §1º, IV, da Lei nº 9.430/96, e não à redação atual.

Em sentido contrário, deve-se mencionar o Acórdão nº 1301-003.020 [12], no qual sustenta que as hipóteses do inciso II, “a” e “b” do artigo 44 não são novas hipóteses de cabimento de multa, mas apenas formas distintas de aplicação, na hipótese de nada haver a ser cobrado a título de tributo — daí serem multas cobradas isoladamente —, e reconhecendo a aplicabilidade do princípio da consunção ao caso. Ademais, ressalta também ser essa a jurisprudência do STJ (REsp nº 1.499.389/PB e REsp nº 1.496.354/PR).

Na 1ª CSRF, a matéria tem sido julgada em favor da legalidade da concomitância das multas, a exemplo do Acórdão nº 9101-004.764 [13] (com base no Acórdão nº 9101-002.962 [14]). Na decisão, menciona-se a exposição de motivos da MP 351/2007, mas ao final conclui que houve alteração do conteúdo do artigo 44 da Lei nº 9.430/96, sem enfrentar a proclamação legislativa expressa de que seria mera redução de alíquota. Quanto ao alcance da súmula, faz um levantamento histórico de propostas de enunciado nos anos de 2009, 2012, 2013 e 2014, argumentando que a referência à redação original da Lei nº 9.430/96 teria sido proposital, para restringir seu alcance, e aduz que “ainda que precedentes da súmula veiculem fundamentos autorizadores do cancelamento de exigências  formalizadas a partir da alteração promovida pela Medida Provisória nº 351, de 2007, não são eles, propriamente, que vinculam o julgador administrativo, mas sim o enunciado da súmula, no qual está sintetizada a questão pacificada”.

Como se vê, a maior parte dos acórdãos que rejeita a aplicação da súmula para casos após a MP nº 351/2007 não chega a fazer uma análise rigorosa das duas redações do artigo 44 da Lei nº 9.430/96, assumindo a inovação, sem cotejá-los para demonstrar de maneira objetiva o que implicou a alteração de sentido, a despeito do similar teor delas. Tampouco, com exceção da CSRF, praticamente não se aprofundam na questão do âmbito da aplicabilidade da Súmula nº 105 aos casos posteriores à MP nº 351/2007; simplesmente negam a sua aplicação em razão da mudança de numeração dos dispositivos no artigo 44 [15].

Além disso, ressalte-se que a grande maioria das decisões foi tomada por voto de qualidade, o que pode implicar alteração desse entendimento em decisões futuras, por força da aplicação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, que estabeleceu o favorecimento dos contribuintes no empate nos julgamentos. Nesse sentido, inclusive, foi proferido o recentíssimo Acórdão CSRF nº 9101-005.080 (ainda não publicado), favorável ao contribuinte, com base no novo critério de desempate.

________________________________________

[1] Não se inclui aqui, por óbvio, as hipóteses em que a pessoa apresenta balancetes de suspensão ou de redução, demonstrando que o valor acumulado excede o imposto calculado com base no lucro real.

[2] Relator Valmir Sandri, julgado em 22/11/2011.

[3] Acórdãos 9.101-001.261, de 22/11/2011; 9.101-001.203, de 17/10/2011; 9.101-001.238, de 21/11/2011; 9.101-001.307, de 24/04/2012; 1.402-001.217, de 04/10/2012; 1.102-00.748, de 09/05/2012; 1.803-001.263, de 10/04/2012.

[4] Redator designado Cons. Allan Marcel Teixeira, julgado em 11/02/2020.

[5] Redator designado Cons. Efigênio de Freitas Júnior, julgado em 10/03/2020.

[6] Redator designado Cons. Marco Rogério Borges, julgado em 21/01/2020.

[7] Ademais, causa espécie o argumento complementar, tendo em vista que a consunção pressupõe sanções sobre hipóteses diferentes, mas que se relacionam por um vínculo meio e fim. Em havendo identidade de hipóteses, tratar-se-ia de bis in idem, figura diversa da consunção.

[8] Relator Cons. Paulo Ciccone, julgado em 11/03/2020.

[9] Redator designado Cons. Gustavo Guimarães da Fonseca, julgado em 11/02/2020.

[10] Relator Cons. Luiz Augusto de Souza Gonçalves, julgado em 10/03/2020.

[11] Redator Cons. Cláudio Camerano, julgado em 10/03/2020.

[12] Redator Cons. Roberto Silva, julgado em 15/05/2018.

[13] Redatora designada Cons. Edeli Bessa, julgado em 05/02/2020.

[14] Relatora Cons. Adriana Gomes Rêgo, julgado em 04/07/2017.

[15] Partem do pressuposto que a convocação de uma súmula se dá por intermédio de uma aplicação lógico-subsuntiva, como se lei fosse, e não analógico-problemática, como preceitua o artigo 489, §1º, inciso V e VI do CPC. Nesse sentido: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária. In Processo tributário analítico (vol. III). CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, 2016. pp. 111-140.

***

Por Carlos Augusto Daniel Neto, sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.

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