Opinião: O ICMS na transferência entre estabelecimentos da mesma empresa

Há uma infinidade de dúvidas e controvérsias no Direito Tributário brasileiro. Mas, se há alguma certeza bem consolidada, é a de que o ICMS não pode ser exigido sobre transferência de bens entre estabelecimentos de uma mesma empresa.

Há mais de 20 anos, a Súmula nº 166 do STJ já pontifica que: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

Desde então, o STJ já ratificou esse entendimento no REsp Repetitivo nº 1.125.133. Mais recentemente, o STF, em repercussão geral, também reafirmou sua jurisprudência no julgamento do ARE nº 1.255.885, firmando a tese de que: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

A questão que tem afligido muitos contribuintes agora é: se não há exigência de ICMS nessa operação, isso significa que se trata de uma hipótese de não incidência do imposto, impondo-se a exigência do estorno do crédito da operação anterior, na forma do artigo 155, § 2º, inciso II, “b”, da Constituição Federal de 1988 [1]?

Entendemos que não. Não há qualquer necessidade de estorno do crédito apropriado na aquisição da mercadoria, caso ela seja transferida para outro estabelecimento da mesma empresa. E quem acabou de dizer isso foi o próprio STF, em julgamento ainda mais recente, do RE nº 1.141.756 (Tema nº 1.052).

Nesse último precedente, o STF definiu a tese de que é possível a manutenção de crédito do ICMS no caso de aparelhos celulares adquiridos por empresas de telefonia e cedidos, em comodato, a seus clientes.

Os Estados exigiam o estorno do crédito do imposto nessa situação, sob a alegação de que se tratava de bem do ativo permanente alheio às atividades do estabelecimento, nos termos do artigo 20, §1º, da Lei Complementar nº 87/1996. Além disso, os Fiscos argumentavam que a operação seguinte era uma hipótese de não incidência do imposto, o que deveria ensejar o estorno de crédito, na forma do citado artigo 155, §2º, inciso II, “b”, da Constituição Federal de 1988.

A maioria do STF entendeu ser legítimo o aproveitamento do crédito nesse caso, porque o bem do ativo permanente cumpriria, sim, a finalidade essencial das empresas de telefonia, viabilizando a prestação do serviço de comunicação ao facilitar o acesso de seus clientes ao aparelho celular.

Mas o que é mais importante para a discussão do presente artigo: a corte entendeu pela manutenção do crédito porque a “saída” em questão não era propriamente uma “operação de circulação” do produto na cadeia econômica, que se enquadrasse nas hipóteses de “isenção” e “não incidência” do imposto, nas quais se impõe a glosa do crédito. Confira-se a esse respeito o excerto esclarecedor do voto vencedor do relator, ministro Marco Aurélio:

“Considerado o teor do verbete nº 573 da Súmula do Supremo, a saída física de máquinas, utensílios e implementos, a título de comodato, não constitui fato gerador de ICMS. Inexiste etapa a integrar as sucessivas transferências do produtor ao consumidor. Ausente operação de saída, descabe cogitar de situação reveladora de exoneração tributária — isenção ou não incidência —, a fim de impedir-se o aproveitamento dos créditos, conforme as balizas versadas no preceito.

Ainda que cedidos para uso, os aparelhos celulares permanecem no patrimônio da pessoa jurídica, na condição de destinatária final. Daí que o direito ao crédito deve ser aferido à luz da incorporação dos bens ao ativo imobilizado”.

É perfeitamente possível estender o raciocínio aplicado pela corte aos contratos de comodato para as transferências entre estabelecimentos da mesma empresa.

Nem no comodato, nem na transferência de mercadoria, verifica-se uma operação de circulação jurídica ou mesmo econômica da mercadoria, assim entendida uma compra e venda mercantil, pela qual se transfere a propriedade da mercadoria ao longo da cadeia produtiva e comercial.

O contrato de comodato é um empréstimo gratuito de bens infungíveis, nos termos do artigo 579 do Código Civil. A transferência entre estabelecimentos constitui a simples movimentação física de bens entre estabelecimentos distintos de uma mesma pessoa jurídica.

Tanto no comodato quanto na transferência da mercadoria entre estabelecimentos do mesmo contribuinte a mercadoria permanece no patrimônio da pessoa adquirente da mercadoria, havendo simples alteração na posse ou no local do bem.

Em nenhuma dessas hipóteses pode-se cogitar da existência de uma operação de circulação jurídica ou econômica que se qualifique como “isenção” ou “não incidência do imposto”. Para que haja estorno do crédito, é preciso que exista uma saída definitiva, isto é, uma efetiva operação de circulação da mercadoria para outro contribuinte, com “isenção” ou “não incidência” de ICMS.

Imagine-se um supermercado que adquire um produto alimentício tributado que é vendido com isenção do ICMS ao consumidor final. Ou mesmo um distribuidor de refrigerantes que, na qualidade de substituído tributário, adquire a mercadoria do industrial (substituto tributário) para revendê-la sem a incidência do ICMS a um comerciante varejista. Como há a isenção e não incidência na operação seguinte de venda, o supermercado e o distribuidor não podem tomar crédito sobre o ICMS incidente na operação anterior.

Mas isso é completamente diferente do que ocorre com o comodato, como já acentuado pelo STF, e com a própria transferência física entre estabelecimentos. Em nenhum desses casos verifica-se uma operação mercantil de transferência de propriedade da mercadoria na cadeia de circulação do produto. Não há propriamente uma “operação isenta” ou na qual o imposto “não incida”. Simplesmente não há “operação seguinte de circulação de mercadoria”, como exige a Constituição, para se cogitar do estorno do crédito da operação anterior!

A exigência do estorno do crédito na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa representaria uma gravíssima violação ao princípio da não cumulatividade do ICMS.

Ora, o contribuinte que incorreu no ônus do ICMS na aquisição de uma mercadoria ficaria tolhido de exercer esse crédito pelo simples fato de movimentar essa mercadoria para outro estabelecimento de sua titularidade. Com isso, o imposto se tornaria cumulativo e iria incidir sobre ele mesmo, apenas porque o contribuinte movimentou fisicamente a mercadoria de um estabelecimento para outro.

Não há qualquer sentido jurídico ou mesmo econômico em se exigir o estorno de créditos em uma situação que deve ser completamente indiferente e neutra, do ponto de vista jurídico, ao ciclo mercantil tributável pelo imposto.

O Fisco nunca cogitou exigir o estorno de créditos de ICMS em situações nas quais o bem adquirido é enviado para uma exposição, para reparo ou para algum tipo de beneficiamento. Embora haja movimentação física em todos esses casos em que obviamente “não incide” o ICMS, está claro que não se está cogitando da “não incidência” a que a Constituição alude para determinar o estorno do crédito.

Em resumo: o ICMS não incide na transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. E o crédito? “Está” vinculando ao “bem” que foi adquirido e o Fisco é juridicamente “obrigado” a respeitá-lo, por não se configurar qualquer das hipóteses em que a Constituição autoriza a glosa de créditos do ICMS. Ou, em um acrônimo: “Está bem, obrigado”.

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[1] “Artigo 155 — (…)

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I. será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

II. a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;”

***

Por Luiz Roberto Peroba, sócio da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados.

João Rafael Gândara, advogado associado da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados.

Revista Consultor Jurídico 

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