Opinião: STF e imunidade do ITBI na integralização de capital: procurando pelo ‘lado bom’

O objetivo deste artigo é analisar determinados aspectos do julgamento do Supremo Tribunal Federal referente ao Recurso Extraordinário 796.376/SC, que tratou da imunidade de imposto sobre a transmissão de bens imóveis (ITBI) na transferência de imóveis para integralização de capital de sociedades. Diferentemente de outros trabalhos sobre o tema, nossa ênfase não será atribuída às questões relacionadas à constituição de reservas de capital. O que abordaremos é a possível implicação — indireta — desse julgamento para a integralização de capital mediante transferência de imóveis no caso de pessoas jurídicas cuja atividade seja “preponderantemente imobiliária”.

Como se a pandemia já não fosse causa de preocupação suficiente para o ano de 2020, os profissionais e estudiosos da área tributária têm recebido dose adicional: nos últimos meses, o STF analisou diversos casos tratando de questões tributárias extremamente relevantes. De forma ilustrativa, é o que foi chamado por alguns de “furacão de precedentes tributários“.

Um desses novos precedentes é justamente o RE 796.376/SC, cujo acórdão foi publicado no dia 25 de agosto e no qual a maioria do STF, seguindo o voto do ministro Alexandre de Moraes, fixou a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.

Objetivamente, a situação analisada pelo STF envolve empresa que recebeu imóveis de seus sócios no contexto do aumento do seu capital social. No entanto, somente parte do valor do imóvel foi registrada em contrapartida do capital social. O restante foi destinado à conta de reserva de capital, que também compõe o patrimônio líquido de uma pessoa jurídica. Esse procedimento é bastante comum e inclusive determinado pela Lei das S.A., em seu artigo 13, parágrafo segundo.

Importante destacar que a discussão do RE 796.376/SC em nada tem a ver com a incidência de ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado do imóvel e seu valor de declaração, hipótese sem qualquer respaldo legal.

De todo modo, alguns especialistas se debruçaram sobre as conclusões do STF, apresentando uma série de críticas. Ainda que pudéssemos fazer coro a boa parte delas, nosso foco será depositado em determinadas considerações apresentadas pelo ministro Alexandre de Moraes para construir seu raciocínio.

O voto vencedor parte da análise do artigo 156, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição, que prevê a imunidade de ITBI nas transferências de imóveis decorrentes de “eventos societários’. Inicialmente, o dispositivo constitucional trata da imunidade aplicável quando a transferência do imóvel se dá no contexto de “realização de capital”, sendo essa a questão central tratada no julgamento do STF. Além disso, esse dispositivo também prevê imunidade sobre as transmissões de imóveis no contexto de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica.

Na última oração desse dispositivo constitucional, é veiculada exceção à imunidade: o ITBI continuaria devido se, “nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”. O caso analisado pelo STF não tratava dessa exceção: as informações dos autos sugerem que a pessoa jurídica não exercia “atividades imobiliárias”.

Ainda assim, o ministro Alexandre de Moraes entendeu por bem esclarecer que a expressão “esses casos” abrangeria apenas as transmissões de bens decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção, de modo que a exceção à imunidade não se aplicaria às transferências decorrentes de “realização do capital”. Ou seja, para o ministro, a integralização de capital de uma pessoa jurídica com entrega de bens é imune ao ITBI, tenha ela atividade preponderantemente imobiliária ou não.

Essa conclusão fica bem clara nos seguintes trechos do voto vencedor:

“Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I — ‘nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil’ — revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão ‘nesses casos’ não alcança o ‘outro caso’ referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do artigo 156 da CF. (…)

Ou seja, a exceção prevista na parte final do inciso I, do §2º, do artigo 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso (…).

Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito”.

Aparentemente, tais considerações podem soar como questões secundárias analisadas pelo ministro. Em certa medida, é realmente o caso: a delimitação da imunidade nos casos envolvendo pessoas jurídicas “imobiliárias” não compõe a ratio decidendi desse julgado. Não significa que tais questões sejam irrelevantes.

Isso porque, prevalecendo esse posicionamento em casos futuros, significaria reconhecer que o artigo 37 do Código Tributário Nacional não foi recepcionado pela Constituição Federal, ao menos em parte [1]. Esse dispositivo prevê que a imunidade de ITBI não é aplicável nas transferências para pessoas jurídicas imobiliárias também quando realizada a título de integralização de capital (e não apenas no caso de fusão, incorporação, cisão ou extinção). Ou seja, as cobranças realizadas pelas autoridades fiscais municipais com base nesse artigo, ou em previsões similares das respectivas legislações municipais, poderão ser questionadas.

Além disso, o voto do ministro Alexandre de Moraes, seguido por outros cinco ministros, sem ressalvas expressas, adota posição que não tem sido analisada pelo STF recentemente. Os casos recentes que chegaram à corte e que tratavam da imunidade de ITBI em aumentos de capital pressupunham a definição da atividade preponderante da pessoa jurídica. Inclusive, em virtude da impossibilidade do acervo probatório, tais casos não tiveram o seu mérito analisado. O entendimento defendido no voto vencedor, por outro lado, afasta a relevância do tipo de atividade desenvolvida, bastando, apenas, que a transferência do imóvel implique aumento exclusivamente do capital social, sem constituição de reservas.

Mesmo diante de julgado que limita uma imunidade constitucional, é possível encontrar aspectos positivos para os contribuintes. Ao aceitar a incidência de ITBI sobre a parcela do valor do imóvel destinada à reserva de capital, o racional que guiou o STF sugere que a integralização de bens em uma pessoa jurídica, independentemente de sua atividade ser imobiliária ou não, é imune ao ITBI. Basta, em linha com a tese fixada, que a totalidade do valor integralizado seja destinado ao capital social.

O “lado bom” da decisão é, enfim, fornecer argumento para as pessoas jurídicas imobiliárias que recolheram ITBI em capitalizações passadas e poderão pleitear a restituição desses pagamentos, ou que realizarão capitalizações futuras e poderão questionar a exigência desse tributo perante o Poder Judiciário.

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[1] De acordo com o parágrafo 5º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a legislação tributária anterior à Constituição Federal de 1989 só continua vigente naquilo que não for incompatível com o novo Sistema Tributário Nacional.

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Por Davi Finotti Ferreira, advogado em São Paulo e pós-graduando em Direito Tributário pelo Insper;

Diogo Olm Ferreira, advogado em São Paulo e especialista em Direito Tributário Internacional pelo IBDT.

Revista Consultor Jurídico 

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