Código de defesa do pagador de impostos entre Holmes e Marshall

Por Fernando Facury Scaff

Trato de Projeto de Lei Complementar — PLP 17/2022, proposto pelo deputado Felipe Rigone (União-ES), que “estabelece normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres do contribuinte, principalmente quanto a sua interação perante a Fazenda Pública e dispõe sobre critérios para a responsabilidade tributária”.

Embora não conste do texto, o nome de guerra pelo qual o PLP 17/22 vem sendo conhecido é Código de Defesa do Pagador de Impostos, contra o qual registro cerca implicância, pois advém do idioma inglês, taxpayer, devendo ser utilizado o termo em português, Código de Defesa do Contribuinte, que, aliás, consta da justificativa de sua proposição.

Trata-se de uma iniciativa oportuna e tardia, pois diversos estados já instituíram Códigos de Defesa do Contribuinte, como São Paulo (iniciativa do então deputado Rodrigo Garcia, atual governador do Estado), Paraná, Pará e muitos outros.

Não é necessário mencionar que seu texto atrai polarizações, sendo louvado pelos contribuintes e atacado pelos fiscos, que passaram a o denominar de Código de Defesa do Sonegador, o que é absolutamente injusto.

Muitas de suas disposições estão expressamente descritas na Constituição e em outras normas, sendo apenas uma transcrição de seus preceitos, tais como a ampla defesa e o contraditório (artigo 3º, IV e artigo 9º, PLP e artigo 5º, LV, CF), a menor onerosidade na cobrança do crédito fiscal (artigo 4º, PLP e diversas normas do CPC), legalidade (artigo 5º, PLP e artigo 150, I, CF) e por aí vai.

Todavia, traz inovações de relevo, como a regra da equivalência na cobrança das taxas (artigo 6, II, PLP), o que já foi consagrado pela jurisprudência do SFT (ver ADI-MC-QO 2.551, ministro Celso de Mello), mas é completamente ignorada por estados e municípios. Outro aspecto importante é estabelecer a boa-fé presumida do contribuinte (artigo 7º, PLP), o que deveria ser a regra nas relações com os Fiscos, mas que, na prática, ocorre o inverso.

Inovação oportuna, que infelizmente se faz necessária, é a de o contribuinte receber “adequado e eficaz atendimento pela repartição fazendária”, devendo ser “tratado com respeito e urbanidade pelos servidores da Fazenda Pública” (artigo 11, PLP). Isso nem sempre ocorre, mas será inócuo caso fique apenas na letra da lei.

As regras processuais e procedimentais também já constam de inúmeras normas de todos os níveis federativos (artigos 13 a 15, PLP), sendo introduzida uma novidade (artigo 16, PLP) que é a da defesa prévia do contribuinte, como uma espécie de proposta de ajuste de conduta prévia à instauração do litígio. Isso já é adotado em alguns estados e na União, mas sem eficácia, pois o Fisco quase nunca ouve o que o contribuinte relata, sendo, no mais das vezes, apenas uma etapa prévia a ser cumprida de forma burocrática. É preciso que um fale e o outro escute.

É interessante a proposta de que “o mero pertencimento a um mesmo grupo econômico não enseja solidariedade tributária” (artigo 17, PLP), o que é um corolário da pressuposição da boa-fé do contribuinte.

É oportuno estabelecer que que as fianças e outras garantias que o contribuinte deve oferecer para suspender o crédito tributário devem ser reembolsadas ao final da lide (artigo 21, PLP), o que nem sempre é deferido pelo Judiciário (embora o CPC admita), sendo um custo gigantesco para as empresas.

A regra da compensação plena entre débitos e créditos entre contribuintes e fiscos é igualmente positiva (artigo 24, PLP), sendo muito mais aplicável aos estados e Municípios do que à União, pois o sistema Per/Dcomp federal tem sido bastante eficaz nesse sentido, embora deva ser aperfeiçoado.

Vedar a presença de força policial nas ações fiscais, com exceções, é igualmente positivo (artigo 25, IV, PLP), pois visa reduzir a espetacularização tão usual em tempos recentes. No mesmo sentido, é adequado deixar ainda mais claro que o processo penal não pode ser usado para a cobrança de impostos (o que, infelizmente, é uma deturpação usual), devendo-se aguardar o encerramento da fase administrativa-fiscal (artigo 28, PLP).

Por outro lado, é esdrúxula a tentativa de amarrar a interpretação ao que “foi veiculado pela lei que institua o tributo” (artigo 25, V, PLP). Isso seria mais adequado às leis que afastam a tributação, como os diversos Refis em todos os níveis federativos, que muitas vezes são boicotados pelos servidores dos Fiscos incumbidos de sua aplicação, por dela discordar. Mesmo assim o texto é inadequado, tal qual proposto. As normas da Lindb são melhores nesse sentido.

Gosto da proposta de redução do prazo prescricional de cinco para três anos (artigos 31 e 34, PLP), pois as fazendas públicas foram bastante equipadas ao longo do tempo, desde a promulgação do CTN até os dias atuais, e a redução do prazo ampliará a segurança jurídica e induzirá eficácia em sua cobrança. Falta uma regra de transição para regular esse meio tempo.

Grosso modo, o PLP 17/22 é repetitivo de outras normas já vigentes e nem sempre cumpridas, devendo ser aperfeiçoado ao longo do processo legislativo, e não descartado. Reunir tais normas em um mesmo texto é uma iniciativa oportuna, que pode redundar em melhorar as relações fisco-contribuintes, porém jamais deverá ser lido como um salvador da pátria. Se fosse, os Códigos estaduais já teriam melhorado essa relação.

Sob meu ponto de vista é necessário previamente considerar que a “tributação fica entre ‘preço da civilização’ e ‘poder de destruir'”, conforme expus há quase uma década, entremeando as conhecidas frases de Oliver Wendell Holmes (1841-1935), juiz da Suprema Corte norte-americana: “Impostos são o preço que nós pagamos por uma sociedade civilizada”, com a proferida por outro Juiz da Suprema Corte dos EUA quase 100 anos antes, John Marshall (1755-1835): “O poder de tributar envolve o poder de destruir”.

Permaneço com a impressão de que “a tributação como o preço da civilização” está superfaturada no Brasil atual, pois estamos mais próximos do “potencial destrutivo do poder de tributar”. Marshall permanece vencendo Holmes. Triste.

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Fonte: CONJUR

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