O STF diante do princípio da primazia da realidade sobre a forma

Análise dos fundamentos adotados no julgamento da constitucionalidade da Lei do Salão Parceiro

Por Ana Frazão

Excelente caso para refletir sobre o princípio da primazia da realidade sobre a forma é a ADI 5625[1], cujo acórdão foi publicado recentemente. A ação impugnava a Lei 13.352/2016, também conhecida como Lei do Salão Parceiro, cujo objetivo era assegurar a validade de contratos de parceria entre trabalhadores do ramo da beleza, como cabeleireiros e manicures, e os respectivos salões.

O voto vencido do relator, Ministro Edson Fachin, adverte para o fato de que já seria estranha a pretensão da lei de afastar o vínculo trabalhista em situação na qual somente o exame do caso concreto poderia fazê-lo:

“A legislação infraconstitucional que tenha por intenção afastar a existência do vínculo de emprego tem contra si elevado ônus argumentativo, devendo necessariamente se fundar, a um só tempo, em interesse público e motivo social relevante.

(…)

Somente da análise do caso concreto é possível identificar-se a presença ou não dos elementos fático-jurídicos constitutivos da relação empregatícia, concernindo à Justiça Trabalhista apreciá-lo e, na hipótese de conjugados estes elementos, considerar existente o vínculo de emprego. Uma vez que a Lei 13.352/2016 tem por finalidade pacificar entendimento quanto às hipóteses de inexistência de relações empregatícias no ramo do embelezamento, há que se demonstrar a reiteração de práticas que estariam a fulminar a garantia constitucional da segurança jurídica”.

Considerando que uma lei com esse propósito cria dificuldades para a constatação do vínculo trabalhista mesmo quando os seus elementos constitutivos estejam presentes, a advertência da corrente majoritária, no sentido de que “a higidez do contrato é condicionada à conformidade com os fatos, de modo que é nulo instrumento com elementos caracterizadores de relação de emprego”, pode ser de pouca eficácia prática ou mesmo inócua.

Análise dos fundamentos adotados no julgamento da constitucionalidade da Lei do Salão Parceiro

Como bem explicou o ministro Fachin em seu voto vencido, a lei impugnada nem mesmo determina que a parceria apenas seria possível quando inexista a subordinação característica ao vínculo de emprego. Daí a clara criação de incentivo para a burla da legislação trabalhista:

“A lei ora contestada não requisita que o ato contratual reúna elementos próprios a determinar a autonomia e a ausência de subordinação jurídica do trabalhador, nem tampouco comina percentual da cotaparte que afaste a caracterização da relação de emprego ou exclua sua inferioridade econômica. Porque os dispositivos vergastados incidem sobre relações caracterizadas pela subordinação jurídica e econômica, com possibilidade de existência de vários dos critérios indicadores da presença da relação de emprego, a Lei 13.352/2016 nada mais faz que conferir, mediante instrumento formal de contratação, roupagem de autonomia ao trabalho subordinado, com exclusão dos direitos trabalhistas fundamentais incidentes da relação de emprego”.

Consequentemente, é acertada a conclusão do ministro Edson Fachin, no sentido de que a lei esvazia “o conteúdo constante das normas pela Constituição da República consagradas de que decorrem a presunção e a prevalência em favor do vínculo empregatício” e que “entender de forma diversa é facilitar o mascaramento do vínculo de emprego, com ônus ao trabalhador de descortiná-la, implicando clara ofensa à salvaguarda outorgada pela Constituição da República à relação de emprego”.

As mesmas preocupações foram apontadas pela ministra Rosa Weber, que acompanhou o voto de Fachin, sob o fundamento de que a lei impugnada fomentava a fraude à legislação trabalhista.

Não obstante, a lei foi considerada constitucional pela maioria do tribunal por uma série de fundamentos que, com a ressalva do devido respeito, são bastante problemáticos do ponto de vista da primazia da realidade sobre a forma, como procurarei demonstrar a seguir:

 



















































Argumento da corrente majoritária



Contraponto



Modelos
alternativos de trabalho têm surgido que não se subsumem à legislação trabalhista



Exatamente
por ser uma legislação voltada à primazia da realidade, a legislação
trabalhista já conta com meios para identificar a subordinação mesmo em novos
modelos de trabalho. Assim, a lei sob exame, longe de priorizar a realidade,
acaba criando dificuldades ou mesmo impossibilitando o reconhecimento do
vínculo trabalhista, mesmo quando estejam presentes os seus pressupostos
materiais.



As
relações entre profissionais da beleza e os salões nem sempre são de natureza
trabalhista



Tal
argumento não justifica a necessidade, a adequação e a razoabilidade de uma
lei que aprioristicamente afasta o vínculo trabalhista, ainda mais diante da
assimetria entre as partes.



Eventuais
fraudes e simulações podem ser contornadas pelo Judiciário



Como bem
apontaram os votos-vencidos, a lei cria incentivos para que a fraude seja a
regra, razão pela qual é inadequado imaginar que todos esses problemas sejam
resolvidos de forma ex post por um Judiciário lento e cada vez mais
abarrotado de processos.



Os
próprios trabalhadores preferem não ser empregados



Além de
serem discutíveis as evidências dessa afirmação, os trabalhadores nem sempre
têm a exata dimensão das consequências jurídicas e econômicas desse tipo de
escolha. Acresce que a legislação trabalhista tem um núcleo duro indisponível
exatamente para evitar flexibilizações da proteção que considera mínima.



A
legislação teve por objetivo formalizar relações até então informais



Se uma das
razões da informalidade era o descumprimento maciço da legislação trabalhista
pelos salões, não faz sentido que a lei queira chancelar e regularizar o
ilícito.



Trabalhadores
parceiros teriam maior remuneração e até maior dignidade



Além de
não haver qualquer comprovação empírica de tal afirmação, ela se choca com
fundamento do ministro Fux no sentido de que uma das finalidades do novo
arranjo contratual é precisamente reduzir custos de transação para os salões,
ou seja, pagar menos para o mesmo trabalho.



Não é só o
trabalho subordinado que é digno



Pouco
importa que existam outras formas de trabalho dignas; o que está em jogo é a
prevalência do vínculo trabalhista quando presentes seus elementos
constitutivos. Acresce que há várias evidências que associam esses novos
arranjos de trabalho à precarização e à perda de direitos e segurança por
parte dos trabalhadores.



O vínculo
empregatício tradicional, apesar de oferecer maior segurança ao trabalhador,
não coincide com parte considerável das oportunidades de trabalho atualmente
oferecidas



Uma das
razões da criação da legislação trabalhista foi o reconhecimento de que a
proteção do trabalho não pode depender apenas da oferta de trabalho, até
porque esta tende a priorizar apenas o aspecto do custo. Tal entendimento
implica um retorno ao retrógrado pensamento dominante do século 19,
sujeitando o trabalhador aos interesses exclusivos dos contratantes.



A parceria
geraria maior eficiência



Argumentos
genéricos de eficiência, sem maiores especificações, são sempre
problemáticos. Por outro lado, as noções de eficiência mais tradicionais
(como Kaldor-Hicks) são indiferentes a quem perde e a quem ganha, de forma
que podem propiciar ganhos exclusivos para os salões em detrimento dos
trabalhadores.



A parceria
diminui custos de transação



A rigor, o
custo do trabalho não é nem mesmo custo de transação, mas sim elemento
estrutural do mecanismo de preços do mercado de trabalho. Entretanto, ainda
que assim o fosse, a proteção do trabalho e o princípio da primazia da
realidade não podem ser reduzidos apenas à dimensão econômica. Direitos são
custos, mas não podem ser reduzidos a custos, argumento que, se levado ao
extremo, poderia ser utilizado para desconsiderar todos e quaisquer direitos,
incluindo os constitucionais.



A parceria
estimula a criação de mais postos de trabalho e a manutenção dos já
existentes



Além da
inexistência de lastro empírico nesse sentido, já que cada vez mais há
relevantes evidências de que a proteção ao trabalho não é incompatível com o
aumento da demanda por trabalho, esse tipo de argumento gera um perigoso
impasse: de que adianta aumentos de trabalho sem as proteções constitucionais
mínimas e mediante a burla do princípio da primazia da realidade?


Sobre os argumentos econômicos, impressiona também como alguns votos se utilizam de fundamentos superficiais e questionáveis como se fossem óbvios e incontroversos, tais como os de que a proteção do trabalhador – no caso, o reconhecimento do vínculo de emprego – teria como consequências o desincentivo ao empreendedorismo no setor e o aumento do desemprego perante os profissionais de embelezamento.

Como já tive a oportunidade de demonstrar em diversas colunas[2], essa compreensão simplista dos mercados de trabalho é hoje questionada por diversas evidências empíricas em sentido contrário, inclusive as que decorrem de estudos no sentido de que o aumento do salário mínimo não apenas não reduz a oferta de emprego, como apresenta importante efeito multiplicador, aumentando a demanda e estimulando o crescimento econômico.

Assim, tudo leva a crer que, com base em argumentos pouco robustos, inclusive do ponto de vista econômico, o STF acabou negligenciando o princípio da primazia sobre a realidade em hipótese que certamente exigiria uma maior atenção por parte do tribunal.

________________________________________

[1] ADI 5625, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059  DIVULG 28-03-2022  PUBLIC 29-03-2022)

[2] FRAZÃO, Ana. Jota. Diálogo entre Direito e Economia. Efeitos do aumento do salário mínimo e a necessidade de se evitar conclusões apressadas; FRAZÃO, Ana. Jota. Desregulação do mercado de trabalho e suas consequências. Série.

Fonte: Jota


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