Billionaire Minimum Income Tax: a proposta dos EUA e reflexões para o Brasil

Imposto de renda mínimo de 20% é tentativa da Casa Branca de aumentar alíquota paga por contribuintes mais ricos

A Casa Branca recentemente propôs a criação de um imposto de renda mínimo de 20% para pessoas físicas com patrimônio acima de US$ 100 milhões. A base de cálculo seria a totalidade da renda, incluindo ganhos não realizados de investimentos em ações[1].

Funcionaria da seguinte maneira: a pessoa física apuraria toda a sua renda, incluindo os ganhos não realizados, e calcularia o imposto de renda normalmente. Caso o imposto devido fosse inferior a 20% da renda total, seria necessário pagar um imposto de renda complementar (top-up tax) para chegar no patamar mínimo de tributação. O pagamento desse top-up tax poderia ser diferido para mitigar problemas de falta de liquidez do contribuinte.

A nova proposta guarda semelhança com projetos anteriores do governo Biden, que acabaram não evoluindo no Congresso dos EUA. O objetivo é evitar o diferimento da tributação dos ganhos decorrentes da valorização de investimentos. Mais grave do que o diferimento, quando o acionista morre, a lei americana permite ao herdeiro receber as ações com um custo de aquisição majorado, equivalente ao valor de mercado atualizado, sem que o ganho de capital seja tributado (stepped-up basis), o que a proposta visa a combater. Também há uma forte conotação de justiça fiscal, com o governo dizendo que milionários e bilionários não devem pagar imposto de renda a alíquotas mais baixas do que a classe média trabalhadora[2].

É importante nomear a proposta americana como um imposto sobre a renda. O objetivo é combater o diferimento da tributação de rendas que tipicamente são acumuladas como os ganhos de capital (“efeito lock-in”). Não se trata de um imposto sobre o patrimônio, como seria um wealth tax, o qual chegou a ser cogitado naquele país, nem um imposto sobre “grandes fortunas”, como temos na nossa Constituição Federal.

No Brasil, é recorrente no debate público o desejo de reduzir a desigualdade social, o senso de injustiça na distribuição da carga tributária entre ricos e pobres, o baixo grau de progressividade do nosso Imposto de Renda (IR) e a ideia de regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), o qual, apesar de ter previsão constitucional, nunca foi implementado.

No Núcleo de Tributação do Insper, estudamos tanto o IR quanto o IGF. As duas linhas de pesquisa aproximam-se quando exploramos a tributação da chamada “renda do capital”, como dividendos, juros, demais rendimentos financeiros, alugueis e ganhos de capital.

Neste artigo, resumimos conclusões das pesquisas e apresentamos algumas reflexões a partir da leitura da nova proposta norte-americana.

Progressividade do Imposto de Renda

A progressividade está prevista no art. 153, §2º, I, da Constituição Federal como um princípio aplicável ao IR. Basicamente, a alíquota deve aumentar à medida que a renda da pessoa cresce.

Há, pelo menos, duas dimensões a considerar quando tratamos desse tema. A primeira é a justiça fiscal distributiva, baseada na ideia de que os mais ricos devem pagar mais IRPF, como proporção da sua renda, do que os mais pobres. A segunda é o efeito redistributivo, a utilização do IRPF progressivo como mecanismo de redistribuição de renda e redução de desigualdade social[3].

Um estudo da OCDE avalia as transferências de renda como sendo mais eficazes para a redistribuição da renda e redução da desigualdade em comparação com a progressividade tributária[4]. Mesmo assim, a progressividade pode ser considerada pelos governos como mecanismo adicional para estratos superiores de renda, fora do escopo de transferências diretas do governo[5].

No Brasil a alíquota máxima de IRPF, de 27,5%, está abaixo das médias mundiais, que é da ordem de 35%, em países similares ao nosso, como México e Chile, e acima de 40% em nações desenvolvidas, como as europeias e os Estados Unidos. Além disso, essa alíquota máxima brasileira é aplicada sobre a renda acima de R$ 4.600 por mês, o que denota uma baixa progressividade nos estratos superiores de renda.

A base de cálculo do IR nos países é mais difícil de comparar. Nos Estados Unidos, embora haja uma amplitude grande de alíquotas e uma alíquota máxima elevada, permite-se a dedução de despesas variadas, como doações feitas a entidades filantrópicas e despesas financeiras[6]. No Brasil, chama atenção, por exemplo, a dedução ilimitada de gastos com saúde, concentradas na população com maior renda e acesso à saúde privada[7].

Em relação aos lucros e dividendos, hoje, no Brasil, a tributação da renda corporativa é concentrada na empresa, não havendo tributação adicional sobre dividendos. Nas pesquisas[8], estudamos um modelo de tributação de dividendos baseado na integração da pessoa jurídica e pessoa física (tributação pela tabela progressiva com permissão de crédito sobre IRPJ e CSLL recolhidos pela empresa). Não descartamos, porém, eventual modelo alternativo de tributação de dividendos, sempre acompanhado de alinhamento dos tributos corporativos (IRPJ e CSLL) aos padrões mundiais.

No modelo “dual” de tributação, aplicado no Brasil, a renda do trabalho é tributada na tabela progressiva, com alíquotas de até 27,5%, enquanto a renda financeira é tributada a alíquotas lineares de 22,5% a 15%, quando não é isenta, como nos fundos de investimento imobiliários e agrícolas.

Por anos, na literatura, a escola da tributação ótima preconizava imposto zero sobre a renda do capital. De algumas décadas para cá, a renda do capital vem sendo tributada, mas geralmente em menor grau do que a renda do trabalho. Essa tendência se deve a diversos fatores apontados pela literatura, como a interferência da tributação nas decisões de poupança ou consumo e impacto no volume de investimentos.

Uma alternativa para melhorar a tributação da renda do capital no Brasil, explorada nas pesquisas[9], seria incluir o rendimento real (acima da inflação) na tabela progressiva, com ampla compensação de perdas, ou manter o modelo dual agregando alguma progressividade. A eliminação de distorções e uniformização de alíquotas no modelo atual também seriam bem-vindas.

Estoque (patrimônio) vs. fluxo (renda)

No Núcleo, além do IR, avaliamos a conveniência de se regulamentar o IGF no Brasil. Mapeamos projetos de lei, pesquisamos experiências internacionais e tentamos medir o risco de perda de base tributária (mobilidade de pessoas) com a eventual criação desse imposto[10].

A ideia do IGF é tributar o patrimônio, o saldo estático de riqueza de uma pessoa física em uma data-base, como 31 de dezembro de cada ano-calendário. A definição de “riqueza” (ou “grande fortuna” para usar a expressão da Constituição Federal brasileira) varia de um projeto de lei a outro, assim como a alíquota aplicável. Alguns projetos buscam compatibilizar a tributação de outros tributos sobre o patrimônio, como o IPTU, com o IGF. Porém, não há previsão de correlacionar a tributação do patrimônio, pelo IGF, com a tributação da renda que resultou no crescimento desse mesmo patrimônio de um ano ao outro, pelo IRPF. Haveria, na prática, a incidência de dois tributos sobre a mesma grandeza econômica – renda que virou patrimônio.

Nos países que utilizam o wealth tax, identificamos seu uso decrescente, com capacidade arrecadatória reduzida e com risco de mobilidade de pessoas, mais do que de capital, dado que há cada vez mais transparência das informações financeiras internacionalmente. Também há regras muito diferentes do que aquelas que seriam aplicáveis a um IGF no Brasil, como um patamar menos elevado de riqueza (wealth) sujeita ao imposto, um caráter quase complementar à tributação da renda do capital pelo IRPF e a limitação da sua incidência ao patrimônio imobiliário, como acontece na França.

A nova proposta dos Estados Unidos não é de um wealth tax, nem de um IGF. É curioso que, apesar disso, somente as pessoas com patrimônio acima de US$ 100 milhões estariam sujeitas ao novo imposto. Podemos especular que essa limitação do escopo de aplicação aos multimilionários e bilionários focaliza a nova regra nas pessoas que geram os maiores impactos arrecadatório e distributivo almejados, criando menos resistência dos demais setores da sociedade.

Ganhos não realizados

A nova proposta norte-americana de tributar ganhos não realizados decorrentes da valorização de investimentos surge nessa espécie de “zona cinzenta” entre patrimônio (estoque) e renda (que resulta no crescimento desse mesmo patrimônio de um ano ao outro).

As controvérsias sobre a tributação dos ganhos não realizados pelo IR começam já nos Estados Unidos. É discutido se o Congresso pode fixar em lei o momento de tributação da renda com fundamento no entendimento de que a fixação do momento da “realização da renda” é uma mera “conveniência da administração pública” e não um pressuposto da tributação da renda decorrente da Constituição daquele país[11].

No Brasil, temos muitas manifestações doutrinárias sobre a realização da renda como elemento necessário para a sua tributação. A palavra “realização”, contudo, comporta diferentes interpretações. Faria bem ao país termos um debate mais interdisciplinar sobre o melhor momento e a melhor forma de tributação da renda, como nas aplicações em fundos de investimentos fechados de renda fixa e em veículos de investimento financeiro no exterior (offshores). Ambos esses veículos de investimento contam com a tributação diferida até o momento do efetivo resgate, diferentemente dos fundos brasileiros de renda fixa de varejo, que são tributados periodicamente pelo come-cotas. Vários projetos de lei têm sido apresentados para tentar alterar essa situação.

Conclusões

O problema do diferimento da tributação dos ganhos de capital nos Estados Unidos parece mais grave do que no Brasil por dois motivos: (1) possibilidade de endividamento com ações em garantia e dedução das despesas financeiras no nível da pessoa física; e (2) transmissão das ações aos herdeiros, no falecimento, com custo de aquisição majorado para o valor de mercado (step-up), sem tributação do ganho de capital.

No Brasil, não há dedução de despesas financeiras no imposto de renda, nem a transmissão de patrimônio aos herdeiros a valor de mercado sem tributação do ganho[12]. Até pode haver a continuação do diferimento da tributação para após o falecimento da pessoa, mas o herdeiro é obrigado a manter o ativo herdado pelo mesmo custo de aquisição do falecido.

Independentemente das diferenças entre os países, a nova proposta norte-americana possibilita reflexões oportunas ao Brasil em temas relativos à progressividade do imposto de renda, forma de tributação da renda do capital, inclusive dividendos, e momento de tributação da renda em situações práticas, como nos fundos fechados e offshores com aplicações financeiras no exterior.

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[1] Proposta de orçamento para 2023 disponível em: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2022/03/budget_fy2023.pdf, com destaque para as propostas tributárias nas páginas 35 e 36. O documento, ainda, reitera o compromisso de o EUA adotar o imposto mínimo corporativo do Pillar 2 do BEPS 2.0 para subsidiárias no exterior de empresas americanas e propõe subir a alíquota corporativa de 21% para 28%. Todos os sites mencionados neste artigo foram acessados em 06.04.2022.

[2] As justificativas constam do fact sheet divulgado pela Casa Branca. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/omb/briefing-room/2022/03/28/presidents-budget-rewards-work-not-wealth-with-new-billionaire-minimum-income-tax/.

[3] Essas análises podem ser ampliadas para o sistema tributário como um todo, incluindo a tributação sobre o consumo, que foge ao escopo deste breve artigo.

[4] CAUSA, Orsetta, HERMANSEN, Mikkel. Income Redistribution Through Taxes and Transfers Across OECD Countries. Economics Department Working Papers No. 1453. Disponível em: https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=ECO/WKP(2017)85&docLanguage=En.

[5] Outra vantagem da progressividade do imposto de renda é o “efeito amortecedor” de perdas em crises. Quando a renda da pessoa cai, a carga tributária é reduzida automaticamente. O FMI aponta esse efeito no Fiscal Monitor de abril de 2020. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2020/04/06/fiscal-monitor-april-2020, Box 2.2. Tax Policy and Automatic Stabilizers.

[6] No EUA, há uma popular estratégia de planejamento tributário apelidada de “buy, borrow, die”. Basicamente, compre um ativo (como uma ação), tome emprestado dando esse ativo em garantia e morra, transmitindo para seus herdeiros o patrimônio sem tributação do imposto de renda e com step-up do custo de aquisição.

[7] A criação de limites para a dedução de gastos de saúde seria uma medida simples para aumentar a progressividade. Dentre vários comentários sobre o assunto, destaco o relato pessoal de Elena Landau, publicado no Estadão. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,elena-landau-regimes-especiais-imposto-de-renda-puxadinho,70003997375.

[8] Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/08/Reforma-Tributac%CC%A7a%CC%83o-da-Renda-Parte-1-04ago20.pdf.

[9] Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/08/NT_Insper_Reforma_IR_Parte_2_Renda_do_capital_Final-19_08_2021.pdf.

[10] Relatórios disponíveis nos seguintes links: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/04/Mapeamento_Insper_PLs_Tributa%C3%A7%C3%A3o-de-grandes-fortunas_proteg.xlsx, https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/06/Relat%C3%B3rio-Insper-IGF-Internacional_enviado_12062020.pdf e https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/05/IGF_V7.pdf.

[11] Costumam ser citadas decisões da Suprema Corte americana e sua evolução com o tempo. A menção à “realização da renda” como “conveniência administrativa” vem do caso Horst de 1940 e foi repetida no caso Cottage Savings de 1991.

[12] O Brasil tinha essa mesma prerrogativa de transmissão do patrimônio com majoração do custo de aquisição e isenção do ganho de capital até meados da década de 1990, quando foi publicada a Lei 9.532/1997.

Fonte: JOTA PRO 

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