Cade já condenou três empresas por ‘sham litigation’

Casos em que empresas ajuízam ações sem fundamento com objetivo de prejudicar concorrente resultaram em multas milionárias

O direito de petição é fundamental à democracia, garantido pela Constituição Federal. O abuso desse direito, no entanto, é passível de punição tanto pelo Judiciário como em âmbito administrativo. Nos últimos anos, a jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) avançou na definição de um tipo específico de abuso do direito de petição: quando uma ou mais empresas coordenam ações sem fundamento contra um concorrente com o objetivo de causar dano econômico, situação conhecida pelo termo em inglês “sham litigation”.

“É um conceito que tem surgido com mais força agora no Brasil, mas é muito explorado lá fora”, afirma Marco Aurélio Rangel, do escritório De Vivo, Whitaker e Castro Advogados. “É da jurisprudência americana de disputas concorrenciais.” O primeiro precedente na Suprema Corte dos Estados Unidos remonta à década de 1960. No Brasil, o tema começou a ser debatido no Cade durante os anos 1990.

A jurisprudência do órgão administrativo registra ao menos 18 casos de “sham litigation” já julgados, com três condenações. O levantamento inédito foi realizado no ano passado e resultou em um artigo acadêmico publicado na Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). “Quem tem poder econômico consegue articular esse tipo de ação”, afirma Vicente Bagnoli, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coautor do artigo ao lado do advogado Gustavo Diniz.

Dois testes criados a partir de casos na Suprema Corte dos Estados Unidos fornecem o arcabouço objetivo para caracterizar “sham litigation”. Esses testes — chamados PRE e Posco — são seguidos pelo Cade. Para configurar “sham litigation” pelo teste PRE, há dois parâmetros:

1. ajuizamento de ação efetivamente sem fundamento;

2. esconder a intenção de interferir em um concorrente.

Já o teste Posco foi concebido em um caso em que não se aplicaria o teste PRE, que leva em conta apenas uma ação sem fundamento — e não várias. De acordo com o precedente, mesmo que uma empresa obtenha decisões favoráveis no Judiciário, ela pode estar praticando “sham litigation”.

“Se a gente fizer uma retrospectiva da jurisprudência no Cade, todos os demais casos que foram analisados tentaram seguir um rito de critérios objetivos para a análise, para se chegar à configuração de ‘sham litigation’”, afirma Polyanna Vilanova, ex-conselheira do Cade e sócia-fundadora do escritório Vilanova Advocacia.

“O Cade tem seguido a jurisprudência e consolidado os critérios objetivos que foram desenhados ao longo dos anos”, diz a especialista, que neste semestre lançará o livro “Sham Litigation no Direito Antitruste Brasileiro” (Ed. Dialética), versão ampliada e revisada de sua dissertação de mestrado. “É bem provável que seja mantida essa jurisprudência que já foi consolidada.”

A Buser, empresa de tecnologia que intermedeia o fretamento de ônibus, atualmente responde a oito ações judiciais, ajuizadas em quatro estados por seis empresas e uma associação do setor de transporte rodoviário. Todas as empresas têm participações relevantes no mercado e fazem parte da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), que também é polo ativo contra a Buser em ações no TRF1 e no TRF3.

A quantidade elevada de ações judiciais com pedidos semelhantes, mesmo que não tenham base na legislação vigente, gera prejuízo econômico para a empresa, que é obrigada a constituir defesa em vários estados. Em sete das oito ações, os argumentos utilizados pelo polo ativo são idênticos.

“Na existência de um vácuo regulatório, há um campo fértil para esse tipo de atuação”, afirma Rangel, que representa a empresa de tecnologia. Vicente Bagnoli argumenta no mesmo sentido: “Quanto menos regulado o setor, maior a possibilidade de entrar com ações e de promover a litigância de má-fé. Quando já existe uma lei, a regra está colocada”, ele opina.

“Nesse caso, as regras foram surgindo com o ônibus andando”, continua o professor do Mackenzie. Como a produção legislativa não acompanha o ritmo da inovação tecnológica, “é impossível antever e sair regulando tudo, porque regular sem ter certeza dos impactos inviabiliza a inovação”.

‘Aquele aplicativo mais barato’

Em dezembro, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou a súmula nº 11, em que atualiza a definição de “transporte clandestino de passageiros”. Na mesma semana em que a normativa foi editada, a Abrati promoveu um vídeo institucional em que usa as cores do aplicativo da Buser e faz outras referências à empresa de tecnologia.

“Comprei passagem naquele aplicativo mais barato”, diz um personagem da peça publicitária. “Se a fiscalização para na estrada, lá mesmo tu fica”, responde outro personagem, antes de um locutor arrematar: “Viajar de ônibus, só se for com serviço legalizado”.

A súmula da ANTT, no entanto, deixa claro que os serviços oferecidos pela Buser não são ilegais e nem clandestinos, como dá a entender a campanha paga pela Abrati. A normativa também impede que os ônibus sejam apreendidos — situação à qual a propaganda da Abrati faz menção direta.

A única informação verdadeira no texto da publicidade da Abrati é que a Buser, de fato, oferece passagens mais baratas que as empresas que compõem a associação.

No artigo que analisa a jurisprudência do Cade sobre “sham litigation”, os autores identificaram em 5 dos 18 casos o uso de informações falsas como critério adotado pelos conselheiros para a definição do conceito. O principal critério identificado, em 17 dos 18 processos, é o ajuizamento de ações consideradas sem fundamento pelos conselheiros do Cade.

Ambos aparecem ligados em “uma espécie de simbiose”, conforme os autores: “Ao correlacionarmos os dados empíricos com uma análise contextualizada de cada processo, notamos uma relação instrumental entre as duas variáveis, já que o uso de informações falsas ou omissão de fatos relevantes seria uma das formas pelas quais empresas condenadas promoveriam ações sem fundamento.”

Um dos casos em que houve condenação envolvia a farmacêutica Eli Lilly e a Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (PróGenéricos). A associação questionou ao Cade se as diversas ações que a empresa ajuizou em diferentes estados configurariam uma barreira à competição, ou seja, se a farmacêutica estava praticando “sham litigation”.

Em seu voto a favor da condenação da Eli Lilly, a conselheira-relatora, Ana Frazão, afirma que “a análise de sham litigation não deve se ater apenas a determinada demanda proposta pela representada, mas ao conjunto de ações promovidas por ela”.

“Cabe ao Cade, então, aferir a existência de padrões de comportamento estratégico a partir de uma macrovisão das condutas levadas a cabo pela representada, tendo em vista que o mérito dessas demandas isoladamente consideradas deve ser apreciado pelas instâncias administrativas ou judiciais aos quais foram submetidos os pedidos, apresentados ao Cade como dados do processo”, concluiu a conselheira.

Em 2015, estudantes de Direito da Universidade de Brasília (UnB) questionaram ao órgão administrativo se sindicatos de taxistas estariam praticando “sham litigation” contra a empresa de tecnologia, que apoiou formalmente a iniciativa, mas a hipótese restou descartada no julgamento.

“No caso da Uber a disputa era mais difusa, porque vinha de vários atores não necessariamente coordenados”, afirma Rangel. “Em um país em que o transporte rodoviário é o principal modal, as empresas têm um poder de coordenação muito grande”, ele compara. “Isso pode até ser caracterizado como cartel”, completa Bagnoli.

Fonte: JOTA


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