Opinião: O que fazer quando o Fisco já sabe?

Cada vez mais contribuintes brasileiros vêm se deparando com uma situação delicada: ao acessarem suas declarações pré-preenchidas no sistema da Receita Federal, encontram ali informações sobre contas bancárias, ativos e aplicações financeiras no exterior que jamais haviam declarado. A surpresa, quase sempre acompanhada de apreensão, vem do fato de que essas informações não foram fornecidas por eles, mas sim por autoridades fiscais estrangeiras.

Desde que o Brasil aderiu ao Fatca e ao Common Reporting Standard (CRS), os dados financeiros de contribuintes mantidos em mais de cem jurisdições passaram a ser automaticamente reportados à Receita Federal. A consequência prática é que o sigilo financeiro transfronteiriço, outrora tratado como barreira efetiva à fiscalização, foi substituído por um regime de transparência compulsória que alcança quase toda a estrutura patrimonial global do contribuinte brasileiro.

Esse novo paradigma é irreversível. E seu impacto é imediato. Ao constatar que o Fisco já sabe da existência de ativos não declarados, o contribuinte se vê compelido a agir. Do ponto de vista tributário, a regularização ainda é viável e altamente recomendável. O artigo 173 do Código Tributário Nacional assegura ao contribuinte o direito de retificar as declarações dos últimos cinco anos e recolher os tributos com os devidos acréscimos legais. Embora o fato de a Receita já dispor da informação afaste os efeitos clássicos da denúncia espontânea prevista no artigo 138 do CTN, que exige desconhecimento prévio por parte do Fisco, a regularização segue sendo o caminho natural para neutralizar ou reduzir o passivo tributário. A depender da natureza do ativo, a incidência pode ocorrer a título de rendimento de capital, ganho de capital ou mera obrigação acessória de declaração, como nos casos em que há saldo não remunerado superior a um milhão de dólares em conta bancária, o que exige entrega da Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior ao Banco Central.

O Brasil já demonstrou, em mais de uma ocasião, sua disposição em adotar políticas de regularização fiscal baseadas no incentivo. Em 2016 e 2017, o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct) permitiu que milhares de contribuintes declarassem recursos mantidos no exterior com segurança jurídica e efeitos penais extintivos. Mais recentemente, em 2024, um novo programa de repatriação foi lançado com o objetivo de promover regularização semelhante, com abrangência ainda mais ampla. Esse programa, já encerrado, reforça a ideia de que o Estado reconhece a regularização como estratégia legítima de recuperação fiscal e desjudicialização e não como mecanismo de indulgência. Ainda que temporários, esses regimes refletem uma diretriz estrutural, qual seja, a de que a autorregularização é mais eficaz que a repressão penal.

Interpretação dos tribunais

Apesar disso, a jurisprudência penal brasileira ainda resiste a essa lógica. O entendimento majoritário dos tribunais superiores segue sendo o de que a manutenção de valores no exterior, sem a devida declaração à Receita Federal ou ao Banco Central, configura o crime de evasão de divisas, previsto no artigo 22 da Lei nº 7.492/1986. E isso independentemente da existência de remessa fraudulenta, uso de interpostas pessoas ou dolo específico de ocultação. A simples ausência de declaração, mesmo em contas inativas ou sem movimentação, tem sido considerada suficiente para caracterizar o tipo penal.

Essa interpretação ignora premissas fundamentais do Direito Penal Econômico contemporâneo. O princípio da intervenção mínima impõe que o Direito Penal só atue onde outras esferas do ordenamento jurídico forem insuficientes para tutelar o bem jurídico envolvido. E no caso da omissão de ativos no exterior, a tutela administrativa, acompanhada de regularização fiscal e recolhimento do tributo, é plenamente capaz de recompor a legalidade, sem que seja necessária a utilização do aparato penal do Estado. Nesse contexto, a manutenção de processos penais mesmo após a resolução da infração na esfera administrativa compromete a racionalidade do sistema e a própria legitimidade da persecução estatal.

De forma ainda mais contundente, essa sobreposição de sanções infringe o princípio da proibição do duplo apenamento, conhecido como ne bis in idem, ou, na doutrina anglo-saxã, como double jeopardy. Trata-se de um princípio jurídico de matriz supraconstitucional que veda que um mesmo fato gerador de sanção seja punido mais de uma vez pelo mesmo ente estatal. No plano internacional, o artigo 8º, item 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos consagra expressamente esse princípio. No plano doméstico, este princípio encontra amparo no artigo 5º da Constituição Federal e em inúmeras decisões que tratam da duplicidade de instâncias sancionatórias, reconhecendo a unicidade do ius puniendi estatal.

Distorção

Na Espanha, o Supremo Tribunal já decidiu que o Estado não pode aplicar sanção penal após sanção administrativa definitiva sobre os mesmos fatos, reconhecendo que o poder punitivo estatal é uno. Na Itália, o princípio do una via impede que o Estado siga simultaneamente pelas vias penal e administrativa. O Fisco e o Ministério Público devem escolher a via adequada de responsabilização e, uma vez adotada, a outra é excluída. Essa racionalidade é fundamental para garantir segurança jurídica, eficiência administrativa e respeito à dignidade do contribuinte. O poder de punir do Estado é uno e indivisível. O que varia é o instrumento, mas não a legitimidade ou o propósito. Exigir do cidadão a submissão a múltiplas sanções por um mesmo fato revela desproporcionalidade e viola os fundamentos mais básicos do Estado de Direito.

Ao tratar com o rigor penal aquele que regulariza sua situação, paga seus tributos e contribui com o erário, o Estado brasileiro incorre numa distorção grave. Penalizá-lo duas vezes é mais que um excesso. É uma clara violação de garantias estruturais do ordenamento jurídico. A racionalidade fiscal moderna demanda que o Estado valorize a cooperação voluntária e distinga, de maneira clara, os infratores contumazes e aqueles que praticaram crimes como lavagem de dinheiro ou corrupção, dos contribuintes que, mesmo em erro, demonstram disposição para caminhar na direção da conformidade. O medo não incentiva a regularização; a previsibilidade, sim. E previsibilidade é o oposto de manter a ameaça de sanções penais mesmo diante da regularização espontânea.

As normas penais que regem os crimes de natureza tributária e cambial, notadamente a Lei nº 8.137, de 1990, que trata dos crimes contra a ordem tributária, e a Lei nº 7.492, de 1986, que tipifica a evasão de divisas, são produtos legislativos de uma outra época. Foram concebidas sob o paradigma da repressão, em um contexto em que predominava a desconfiança estrutural do Estado em relação ao contribuinte, e em que a função fiscalizadora era exercida com ênfase em vigilância e punição. No entanto, a lógica que sustenta esses diplomas legais tornou-se anacrônica diante da moderna filosofia do compliance cooperativo, amplamente difundida pela OCDE e hoje adotada em países de alta maturidade fiscal, inclusive no Brasil.

A nova racionalidade administrativa, construída sobre princípios de transparência, incentivo à conformidade espontânea e cooperação horizontal, busca substituir o modelo inquisitivo por uma cultura de corresponsabilidade, em que o contribuinte é percebido como parceiro legítimo e não como inimigo presumido. Essa mudança de perspectiva tem se mostrado mais eficiente, pois permite concentrar os recursos estatais em situações de real risco fiscal e ao mesmo tempo favorece resultados concretos e consensuais. Dentro desse novo modelo, o endurecimento penal típico das décadas de 1980 e 1990 perde sua razão de ser. A lógica punitiva que anima tais diplomas legais se mostra não só obsoleta, como contraproducente frente ao modelo moderno de administração tributária orientada por eficiência, diálogo e racionalidade institucional.

A questão, portanto, não é só de legalidade, mas de coerência institucional. Quando o Fisco já sabe, e o contribuinte decide corrigir sua omissão, pagar o que deve e declarar seus ativos, a resposta estatal não pode ser a abertura de um inquérito criminal ou oferecimento de denúncia. Essa resposta deve ser o encerramento do ciclo punitivo com segurança e estabilidade. O Brasil precisa alinhar-se às melhores práticas internacionais, que tratam o Direito Penal como instrumento de exceção, reservado a condutas dolosas, reiteradas e estruturalmente fraudulentas. Todo o resto deve encontrar solução no campo tributário, com racionalidade, dentro da lógica da atuação consensual da administração, proporcionalidade e respeito à unicidade do poder de punir.

Sanções administrativas e penais são, em sua essência, manifestações distintas de um mesmo fenômeno: o exercício legítimo do ius puniendi estatal. Ambas impõem consequências jurídicas a comportamentos infracionais, com base em normas sancionatórias que, embora diferenciadas quanto à forma, compartilham a mesma natureza ontológica e idêntica função de tutela de bens jurídicos relevantes. O que define se determinada conduta será qualificada como crime ou como infração administrativa não é a gravidade intrínseca do fato, mas sim uma escolha legislativa, histórica e política, realizada em contextos específicos.

Quando os fatos subjacentes são idênticos, como a mera omissão na declaração de ativos mantidos no exterior, impõe-se investigar qual é o bem jurídico tutelado pela norma e qual a melhor resposta estatal à conduta. Se a omissão decorreu de descuido, erro de interpretação ou desatenção às obrigações acessórias de natureza tributária, a resposta adequada deve vir da legislação fiscal, com regularização e eventual penalidade pecuniária. Se, ao contrário, estiverem presentes elementos como ocultação dolosa de ativos ilícitos, dissimulação patrimonial com propósito criminoso, desvio de recursos públicos ou conexão com lavagem de dinheiro, aí sim se justifica a intervenção penal. Mas essa deve ser sempre a última ratio, acionada apenas quando a via administrativa não for suficiente para restabelecer a legalidade e proteger de forma eficaz o bem jurídico tutelado. E, como demonstrado ao longo deste artigo, essa suficiência, na grande maioria das situações, já se verifica na própria via fiscal e administrativa.

Por José Andrés Lopes da Costa e André Rennó Lopes da Costa

Fonte: CONJUR

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