Por Diego Diniz Ribeiro, Gabriel Saccomano Zoccoli e Natanael Oliveira da Cruz
No dia 5 de novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal concluiu pela existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário (RExt) nº 1.495.108/SP (Tema 1.348 de repercussão geral), por meio do qual analisará “se a imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social é assegurada para empresas cuja atividade preponderante é compra e venda ou locação de bens imóveis”.
O ministro presidente Luís Roberto Barroso destacou que “é recorrente o questionamento judicial de créditos tributários relacionados à transmissão de imóveis para a realização de capital social de empresas cuja atividade preponderante é a compra e venda ou locação de bens imóveis”.
O RExt que resultou na afetação do Tema 1.348 do STF foi interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que, em síntese, fundamentou-se nos seguintes pontos: a “benesse constitucional do artigo 156, §2º, I da CF não é aplicável a contribuinte cuja atividade preponderante seja a compra e venda ou locação de bens imóveis”; e no Tema 796 de repercussão geral, “tal assunto foi abordado no precedente citado de passagem (obiter dicta), de modo a não vincular os tribunais inferiores por não ser acobertada pela coisa julgada”.
Os fundamentos para o reconhecimento da imunidade incondicionada
Os fundamentos apresentados pelo contribuinte no citado leading case versam, principalmente, sobre:
• as circunstâncias para a fruição da imunidade do ITBI na integralização de capital prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição, i.e., a definição se se trata de uma imunidade incondicionada ou condicionada ao (não) desenvolvimento de atividades preponderantemente imobiliárias;
(i.i) convocação da fundamentação desenvolvida no Tema 796 do STF[1] reforçando o ponto acima, ou seja, partindo do pressuposto que a imunidade incondicionada do ITBI foi reconhecida pela ratio decidendi adotada no referido leading case, não se tratando a manifestação lá proferida a título de mero obiter dictum; e
• a não recepção dos artigos 36 e 37 do Código Tributário Nacional (CTN) na parte em que são incompatíveis com o artigo 156, §2º, I da CF/88, haja vista o disposto no §5º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Os fundamentos acima mencionados (‘i’ e ‘ii’) são autônomos entre si, porque, na hipótese de a Suprema Corte fixar que a imunidade incondicionada do ITBI não foi reconhecida pela ratio decidendi do Tema 796, mas sim a título de obiter dictum,[2] resta incólume a interpretação do inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição, bem como do §5º do artigo 34 do ADCT.
A não recepção dos artigos 36 e 37 do CTN à luz da Constituição
De acordo com o inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição, o ITBI “não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.
O aspecto central do Tema 1.348, portanto, é definir se a condicionante prevista no dispositivo acima mencionado (desenvolvimento de atividades preponderantemente imobiliárias) também se aplica à transferência de imóveis em realização de capital; ou somente aos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.
Nesse sentido, conforme preconiza a melhor técnica hermenêutica,[3] o citado desiderato pode ser solucionado sob a ótica das regras gramaticais, visto que o constituinte originário foi preciso ao utilizar pronome demonstrativo que implica relação de proximidade,[4] o que não pode ser ignorado já que, segundo máxima antiga do direito, o legislador não emprega palavras inúteis na lei (verba cum effectu sunt accipienda). A condicionante, portanto, seria aplicável somente “nesses casos”, quais sejam, fusão, incorporação, cisão ou extinção de personalidade jurídica, e não integralização de capital.
Isto se torna mais evidente quando cotejamos o arquétipo constitucional do ITBI delineado pelos textos constitucionais de 1988 e 1946.[5] A redação dada pela Emenda Constitucional 18/1965 à CF de 1946,[6] contemporânea ao CTN sancionado em 1966, condicionava a não incidência do ITBI sobre a transferência de imóveis em integralização de capital ao não desenvolvimento de atividades preponderantemente imobiliárias, mas o constituinte de 1988[7] alterou essa sistemática. Com isso, a referida condicionante passou a ser aplicada somente aos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, e não na integralização de capital, que se tornou incondicionada.
A alteração do arquétipo constitucional do ITBI, portanto, explica o descompasso entre a redação dos artigos 36 e 37 do CTN e do inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição. Isso porque tais dispositivos infraconstitucionais ainda condicionam a não incidência do ITBI na integralização de capital ao não desenvolvimento de atividades preponderantemente imobiliárias, à luz do regime constitucional pretérito. Tal situação, todavia, foi substancialmente alterada pela Constituição para estabelecer a imunidade incondicionada do ITBI na integralização de capital.
Diante disso, a incompatibilidade em questão se resolve no plano de validade das normas, por meio da não recepção da parte dos artigos 36 e 37 do CTN, que contraria o inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição porque, nos termos §5º do artigo 34 do ADCT e da jurisprudência construída pela Suprema Corte,[8] não há recepção das normas incompatíveis com a ordem constitucional vigente.
O caráter incondicional da imunidade prescrita no inciso I do §2º do artigo 156 à luz do tema 796 do STF
No tocante à interpretação do Tema 796 do STF, nos parece que a controvérsia reside no fato de que a imunidade incondicionada do ITBI não era propriamente objeto de julgamento, mas sim a incidência do imposto sobre o valor do bem que excedesse o capital social integralizado. Em linhas gerais, não parece haver questionamento sobre o reconhecimento pela Suprema Corte quanto ao seu caráter incondicional, remanescendo dúvida apenas em relação aos status da manifestação pretoriana, i.e., se a título de ratio decidendi ou de obiter dictum.[9]
Dito isso, convém destacar que o obiter dictum se refere às observações feitas de passagem, as quais não se relacionam com a fundamentação adotada. A ratio decidendi, por sua vez, não reside na tese paradigma ou no objeto do julgamento, mas sim nas razões que levaram o tribunal a decidir, ou seja, nos fundamentos determinantes que ensejam a síntese conclusiva do julgamento, os quais não estão adstritos ao objeto do precedente porque visam a dirimir controvérsias análogas, jamais idênticas.[10]
A Suprema Corte, outrossim, já reconheceu que os precedentes vinculantes buscam solucionar casos similares por meio de um método analógico-problemático,[11] motivo pelo qual a ratio decidendi não está vinculada ao específico objeto do julgamento paradigma. Repita-se: a convocação de um precedente não se dá por intermédio de uma racionalidade lógico-subsuntiva (identidade), mas sim analógico-problemática (comparação).
Dessa maneira, nos parece lícito concluir que o STF decidiu no Tema 796 que o ITBI somente incidirá na integralização sobre o valor dos bens que exceder o capital social a ser integralizado (tese paradigma), visto que essa imunidade não dependeria da atividade desenvolvida pela empresa (ratio decidendi).
Nesse sentido, a ementa[12] do acórdão paradigma estabelece que “a Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis”, bem como “a norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito”.
Além disso, a ratio decidendi do voto-condutor proferido pelo ministro Alexandre de Moraes é clara ao (i) distinguir as duas modalidades da imunidade do ITBI, quais sejam àquelas previstas na primeira parte (incondicionada e relativa à integralização de capital) e na segunda parte (condicionada ao não desenvolvimento de atividades preponderantemente imobiliárias e relativa às transferências decorrentes de fusão, incorporação, extinção ou cisão de pessoa jurídica) do artigo 156, §2º, I da Constituição; e explicitar que, a despeito de a referida condicionante ter sido adotada para a integralização de capital pelo constituinte de 1946, essa sistemática foi alterada pela Constituição que introduziu a imunidade incondicionada.
Sendo assim, a ratio decidendi adotada pela Suprema Corte no Tema 796 de repercussão geral tem como fundamento central a imunidade incondicionada do ITBI, a fim de concluir que a não incidência do imposto está limitada ao capital social integralizado.[13]–[14]
Conclusões
Diante desse quadro e, em particular, considerando a ratio decidendi da decisão que redundou no tema 796 do STF, o que se espera, em respeito às ideias de estabilidade, integridade e coerência[15] de um direito criado judicialmente, nos termos do artigo 926 do CPC, é que a Suprema Corte mantenha sua interpretação da imunidade do ITBI prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição, reconhecendo a impossibilidade de exigência do imposto sobre a transferência de imóveis em integralização de capital.
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[1] A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.
[2] Em verdade, ainda que se reconheça o caráter de obtier dictum dessa manifestação pretoriana, nada impede que no tema 1.348 aqui tratado, a conclusão lá sinalizada seja então acobertada com o status de ratio decidendi.
[3] CARVALHO, Paulo de Barro. Direito Tributário: Linguagem e Método. 7ª ed. São Paulo: Noeses, 2018.
[4] “Nesses” casos e não “nestes” casos.
[5] Nesse sentido: HARADA, Kiyoshi. ITBI: doutrina e prática. 3ª ed. Belo Horizonte: Dialética, 2021. p. 136 e 140.
[6] Art. 9º Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia. (…)
§ 2º O imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
[7] Art. 156 – (…)
§ 2º O imposto previsto no inciso II:
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
[8] Nesse sentido: ADPF 357, ADI 438, ADI 3.569 e 2.475.
[9] Nesse sentido, confira-se: SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 537/539; LAURINDO, Deise Saccaro. Imunidade Tributária do ITBI e os Reflexos do Tema 796 de Repercussão Geral. Revista Direito Tributário Atual, n. 47. p.147-166. São Paulo: IBDT, 1º semestre2021. Quadrimestral; FOLLADOR, Guilherme Broto, VALLE, Maurício Dalri Timm do. A Imunidade do ITBI sobre as Operações de Transmissão Imobiliária Efetuadas em Realização do Capital de Pessoa Jurídica. Revista Direito Tributário Atual, n. 46. p.199-235.São Paulo: IBDT, 2º semestre2020. Quadrimestral; e PRZEPIORKA, PAIVA GOMES E PITMAN. The (not so) good place: consequências indesejadas e a imunidade do ITBI. Consultado em 08.11.2024.
[10] Nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Volume III. 52ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 844 e 846/847; RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024. p. 227.
[11] ARE 985.481/BA.
[12] CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI. IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 156, § 2º, I DA CONSTITUIÇÃO. APLICABILIDADE ATÉ O LIMITE DO CAPITAL SOCIAL A SER INTEGRALIZADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO.
1. A Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis, não incidindo o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica (art. 156, § 2º,).
2. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI.
3. Recurso Extraordinário a que se nega provimento. Tema 796, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
(Recurso Extraordinário nº 796.376/SC – Tema 796 da Repercussão Geral; Tribunal Pleno; Rel. Min. Marco Aurélio; julgado em 05/08/2020).
[13] “Disso decorre, logicamente, que, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o valor do capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI, pois a imunidade está voltada ao valor destinado à integralização do capital social, que é feita quando os sócios quitam as quotas subscritas.”.
[14] Nessa linha, o TJ/DF, v.g., deu provimento à Arguição de Inconstitucionalidade n. 0705115-03.2021.8.07.001 para assentar a imunidade incondicionada do ITBI na integralização de capital.
[15] Tratando do assunto em vista do regime abrasileirado de precedentes: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024. p. 212 e s.s..
Fonte: Conjur