Por Marina Amari
No julgamento do Recurso Especial 2.042.594/SP, o Superior Tribunal de Justiça, por maioria, definiu balizas para a revisão judicial do contrato built to suit. Segundo a Corte, a revisão é possível “desde que (I) não haja renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis; (II) seja possível pormenorizar a parcela destinada a remunerar exclusivamente o uso do imóvel – sobre a qual recairá a pretensão revisional —, desagregando-a da amortização dos investimentos sobre o bem; e (III) esteja comprovada a desproporção entre o valor do locativo e o preço de mercado para empreendimentos semelhantes” [1].
Mas o built to suit é, de fato, passível de revisão judicial? A resposta ao questionamento apenas pode ser obtida se verificada a qualificação jurídica desse contrato.
Qualificação jurídica
O built to suit pode ser definido como o contrato no qual um empreendedor adquire, constrói e/ou reforma um terreno/imóvel nos moldes parametrizados pelo usuário, conferindo-lhe o gozo e o uso da coisa, em troca de uma contraprestação mensal. Em razão da necessidade de amortizar os investimentos feitos pelo empreendedor durante o iter contratual, esse negócio jurídico é de longa duração.
Não raras vezes o built to suit é definido como uma mistura dos contratos de locação e de empreitada, por envolver uma construção na fase inicial do programa contratual e, posteriormente, uma cessão do uso do imóvel ao usuário.
Justamente por envolver prestações afins a outros tipos contratuais, houve um esforço legislativo para conferir-lhe tipicidade. É muito comum que, diante de novas modalidades negociais, o intérprete se socorra aos tipos existentes no ordenamento jurídico. Afinal, se determinado contrato é típico, a legislação previu a disciplina jurídica correspondente, sendo desnecessária a criação de novas soluções jurídicas para problemas já conhecidos. É o fenômeno denominado por Pontes de Miranda de “paixão do típico” [2].
Essa tentativa, no tema relativo ao built to suit, ficou plasmada na Lei 12.744/2012, que inseriu o built to suit na Lei de Locações, por meio do artigo 54-A.
Não obstante a Lei de Locações preveja que o built to suit é uma modalidade de locação [3], há muito se sabe que o nomen iuris [4] não vincula o intérprete. Analisados os elementos essenciais do negócio jurídico, em leitura proposta por Antonio Junqueira de Azevedo [5], ou verificados os índices de tipo [6], segundo orientação de Pedro Pais de Vasconcelos [7], não há dúvidas de que o built to suit escapa ao tipo da locação de imóveis urbanos [8].
O built to suit é, na realidade, um contrato atípico misto, pois condensa prestações afins a outros tipos contratuais, mas mantém uma causa singular que lhe é própria. Quem contrata um built to suit não contrata uma locação, tampouco uma empreitada. Cristiano de Sousa Zanetti, possivelmente em um dos primeiros escritos sobre o tema no Brasil, adiantou que “não há como pensar o negócio em duas etapas distintas. Constrói-se para alugar e aluga-se porque foi construído” [9].
A atipicidade também pode ser percebida pela incompatibilidade do regramento da Lei de Locações ao built to suit. A Lei de Locações é símbolo do dirigismo contratual, e prevê uma série de regras para a proteção do locatário, considerado a parte mais fraca da avença. Essa proteção, contudo, não corresponde à realidade do built to suit [10], em que as partes são empresárias — o que atrai a presunção de simetria e paridade, nos termos do artigo 421-A, do Código Civil.
Rememore-se que o built to suit é um negócio jurídico empresarial e frequentemente utilizado por grandes lojas de departamentos, hospitais, farmácias, centros de logísticas, rede de supermercados e assim por diante.
Duas regras para coibir comportamento oportunista
O tempo do contrato é de todo relevante ao built to suit, dado que uma das peculiaridades do negócio é o espaçamento entre o momento genético e o funcional para o cumprimento das prestações.
Considerando esse panorama, duas regras inseridas pela Lei 12.744/2012 visaram a evitar o comportamento oportunista do usuário.
A primeira delas é a do artigo 54, § 1º, que previu que “poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação”. Isso porque ganhou coro a ideia de que a revisão contratual, por meio da ação revisional de alugueres, inscrita na Lei de Locações, seria medida incompatível ao built to suit.
A segunda delas é relativa à cláusula penal. O legislador acertadamente previu, no artigo 54-A, § 2º, que em caso de exercício do poder de desligamento, nos contratos built to suit, poderá ser convencionada “multa (…), que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação”, em clara exceção à regra do artigo 4º, da Lei de Locações, que enuncia que a multa deverá ser “proporcional ao período de cumprimento de contrato”.
A manutenção do vínculo, no built to suit, é fundamental para a satisfação dos interesses de, ao menos, uma das partes. Nesses casos, a resilição acarreta a frustração do tempo contratual, sendo imperativo que se impeça o exercício abusivo de tal ato.
Revisão judicial
Até aqui, as balizas firmadas são as seguintes: o built to suit (i) é um contrato atípico misto e de longa duração, não obstante a inserção do artigo 54-A, na Lei de Locações, pela Lei 12.744/2012; (ii) não há assimetria entre as partes contratantes, como pode ocorrer na locação de imóveis urbanos; (iii) a precificação integra o risco negocial; (iv) o empreendedor apenas obterá o retorno do investimento após o cumprimento do programa contratual; (v) a legislação muniu o empreendedor de duas armas contra o comportamento oportunista do usuário, prevendo a possibilidade de (v.i) renúncia à ação revisional de aluguel (artigo 54, § 1º) e (v.ii) estipulação de cláusula penal que garanta ao empreendedor o retorno de seus investimentos, caso haja a resilição do contrato pelo usuário antes do prazo acordado.
Firme nessas premissas, cumpre verificar, ainda que sem adentrar ao caso concreto, os critérios de revisão do built to suit fixados pelo Superior Tribunal de Justiça.
Segundo a Corte, a revisão é possível desde que “(I) não haja renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis; (II) seja possível pormenorizar a parcela destinada a remunerar exclusivamente o uso do imóvel – sobre a qual recairá a pretensão revisional -, desagregando-a da amortização dos investimentos sobre o bem; e (III) esteja comprovada a desproporção entre o valor do locativo e o preço de mercado para empreendimentos semelhantes”.
Pois bem, na locação de imóveis urbanos, é lícito às partes estabelecer novo valor do aluguel. Não havendo consenso, após três anos de vigência do contrato, os contratantes podem ajuizar ação revisional, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado (artigo 19, Lei de Locações).
Desde logo, deve ser destacada uma primeira incompatibilidade da ação revisional ao built to suit: o preço de mercado não pode ser utilizado como critério de revisão no built to suit, dado que a remuneração, nesse contrato, engloba não apenas a cessão do uso do imóvel, mas o retorno do investimento do empreendedor. Daí por que a “desproporção entre o valor do locativo e o preço de mercado para empreendimentos semelhantes” está em descompasso com as consequências inerentes a essa modalidade negocial.
Essa parece ter sido a interpretação dada pelo voto vencido de lavra do ministro Villas Bôas Cueva, ao afirmar que a revisão apenas seria possível “quando a pretensão vier fundada em elementos capazes de demonstrar a efetiva quebra do equilíbrio econômico e financeiro do contrato, não adstritos à mera defasagem do valor locativo em comparação com o preço de mercado” [11].
A comparação com “empreendimentos semelhantes” também nos parece pouco factível, pois usualmente perícias judiciais levam em consideração imóveis semelhantes e de uma mesma região. Poucos imóveis, contudo, serão equiparáveis a um advindo de um contrato built to suit, dado que o aluguel firmado nas locações não leva em consideração a equação econômico-financeira própria ao built to suit.
Também é incompatível o transcurso de três anos para que a parte possa pedir a revisão judicial (art. 19, da Lei de Locações), porque o built to suit é um contrato de longa duração. Esses contratos não costumam ter prazos inferiores a 10, 15 e 20 anos, de modo que a passagem de três anos invariavelmente não é suficiente para a amortização dos investimentos. Desconsidera-se que a previsão de revisão judicial foi pensada exclusivamente para a realidade das locações de imóveis urbanos, inclusive as residenciais, que não costumam ter grandes prazos de vigência. No built to suit, a seu turno, o preço é fixado considerando o prazo de duração daquela específica relação jurídica.
Ademais, há uma série de contratos firmados antes do advento da Lei 12.744/2012 que não possui cláusula de renúncia à revisional. A falta de cláusula de renúncia nesses contratos não pode ensejar a revisional, especialmente considerando que a possibilidade de renúncia apenas foi prevista por lei posterior.
Tampouco a ausência de renúncia expressa em contratos firmados após a referida legislação pode permitir a revisão, com base no artigo 19. Em outra oportunidade já defendemos que “mesmo nos casos em que as partes não renunciem à revisional, parece evidente que não poderá o Poder Judiciário sem cautela deferir uma demanda revisional, tendo em vista a remuneração e a especificidade do imóvel. Não por outra razão, os tribunais tiveram oportunidade de afastar a demanda, mesmo antes da Lei 12.744?2012, bem como rejeitar a revisional sem que houvesse a cláusula de renúncia” [12].
Por fim, a remuneração prevista no built to suit é uma só, não sendo passível de segmentação entre “locação” e “construção”. A precificação da remuneração adentra a álea contratual e é realizada com base na operação econômica global do contrato [13]. Dessa forma, se considerado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a individualização para fins de revisão judicial poderá conduzir a uma intervenção com reflexos financeiros indesejados a essa modalidade contratual.
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
Fonte: CONJUR
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[1] REsp n. 2.042.594/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 28/9/2023.
[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 184.
[3] Essa é a dicção do art. 54-A: “Na locação não residencial de imóvel urbano (…)”.
[4] ROPPO, Vincenzo. Il contratto. Seconda Edizione. Milano: Giuffrè, 2011, p. 408.
[5] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
[6] Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, os índices do tipo seriam qualidades ou características com a capacidade de individualizar o tipo (VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. Coimbra: Almedina, 1995, p. 114).
[7] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. Coimbra: Almedina, 1995.
[8] A análise detalhada acerca da atipicidade do contrato built to suit foi realizada em Dissertação de Mestrado: AMARI, Marina Luiza. Contratos built to suit: qualificação e revisão. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná, 2021.
[9] ZANETTI, Cristiano de Sousa. Build to suit: qualificação e consequências. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; PRADO, Maurício Almeida (Org.). Construção Civil e Direito. São Paulo: Ed. Lex Magister, 2011, p. 113.
[10] LEONARDO, Rodrigo Xavier. O contrato “built to suit”. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de direito empresarial. t. IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 424.
[11] REsp n. 2.042.594/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 28/9/2023, p. 20.
[12] AMARI, Marina Luiza. Contratos built to suit: qualificação e revisão. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná, 2021, p. 105.
[13] Não é por outra razão que um dos índices do tipo elencados por Pedro Pais de Vasconcelos é a contrapartida, que pode ser definida como um deslocamento patrimonial em sentido contrário. Esse é um dos pontos nodais para a compreensão não apenas da qualificação jurídica do built to suit, mas da impossibilidade de revisão desses contratos: no built to suit, a contraprestação pecuniária paga pelo usuário compreende, necessariamente, o uso e gozo do imóvel bem como a amortização dos investimentos feitos pelo empreendedor.