Fundos de investimento, responsabilidade civil e prescrição: REsp 2.139.747/SP

Por Leonardo Wortmann Ghiaroni e Livia Sanches Sancio

O recente julgamento do Recurso Especial 2139747/SP [1] pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça marca um passo relevante rumo ao desenvolvimento da jurisprudência dos fundos de investimento no Brasil.

O recurso surge no contexto de ação movida contra a gestora e a administradora de fundo de investimento por um de seus cotistas em busca de indenização por danos alegadamente sofridos em função de condutas dos primeiros. Segundo o autor, aqueles teriam agido em violação a deveres fiduciários a que estão sujeitos, bem como em inobservância das normas regulatórias aplicáveis, emanadas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e do regulamento do veículo — instrumento que, entre outros aspectos, positiva a relação jurídica contratual entre investidores e prestadores de serviços [2].

No decorrer do caso em questão, vem à tona o debate a respeito de qual seria o prazo prescricional aplicável ao pleito autoral: o trienal incidente sobre as pretensões de reparação civil, nos termos do artigo 206, § 3º, inciso V do Código Civil, ou o decenal, previsto genericamente no artigo 205 da mesma lei, cuja aplicabilidade às pretensões de indenização por responsabilidade contratual já foi reconhecida na jurisprudência do STJ [3].

Como se depreende do relatório do acórdão proferido no REsp 2139747/SP, o entendimento do Juízo de primeira instância, ao proferir a decisão saneadora do caso, foi por aplicar a prescrição conforme o prazo decenal. Ato contínuo, a posição foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o decorrente agravo de instrumento.

Interposto recurso especial, a 3ª Turma do STJ decidiu no mesmo sentido, em acórdão com voto de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, acompanhado à unanimidade pela ministra Nancy Andrighi e pelos ministros Moura Ribeiro, Humberto Martins e Marco Aurélio Bellizze — com voto-vista proferido por este último.

Interpretação das normas de fundos de investimento

Examinado o entendimento da Corte Superior sob a estrita perspectiva do prazo prescricional aplicável à espécie, a posição fixada é consentânea com a sua jurisprudência referente à matéria. Considerada, sob outro ângulo, a partir das premissas e construções adotadas pela 3ª Turma para chegar a tal conclusão dadas as particularidades do caso, a decisão revela elementos relevantes sobre a interpretação das normas aplicáveis aos fundos de investimento, que merecem ser ressaltados e analisados mais detidamente.

Desses elementos, vislumbram-se três como de maior destaque:

(1) o diálogo normativo entre o regulamento do fundo de investimento, a lei e a regulação da CVM na disciplina desse instituto e dos agentes a ele relacionados;

(2) a reafirmação da sua natureza jurídica como condomínio de natureza especial, com breve análise dos seus desdobramentos; e

(3) a natureza contratual da relação mantida entre os cotistas do fundo de investimento, de um lado, e o seu administrador e gestor de carteira, do outro.

O primeiro dos três pontos ressaltados acima, a saber, a percepção da disciplina dos fundos de investimento a partir da incidência conjunta da legislação e regulação da CVM sobre a matéria, bem como do seu regulamento (atualmente, elaborado pelo administrador e pelo gestor de carteira [4], reunidos sob a nomenclatura “prestadores de serviços essenciais”), é bem colocado no voto de relatoria. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, nesse contexto, aponta que, com relação a esses dois agentes, o prazo prescricional aplicável à espécie dependerá tanto do tipo de pretensão trazida a juízo, bem como do titular que busca vê-la tutelada.

Essa aplicação concertada de normas legais, regulatórias (da CVM) e regulamentares (criadas pelos prestadores essenciais, mas passíveis de alteração pela assembleia geral de cotistas  [5]) impacta, entre outros aspectos da estrutura e operação dos fundos de investimento, também os contornos e a substância do conjunto de direitos e deveres integrantes da relação jurídica existente entre administradores e gestores de carteira, de um lado, e os titulares de cotas do condomínio, do outro.

A título de exemplo, ainda que o regulamento do fundo não obrigue expressamente os prestadores de serviços essenciais a atuar com diligência perante os cotistas, tal dever encontra previsão normativa atualmente no artigo 106, inciso I da Resolução CVM nº 175, de 23 de dezembro de 2022 [6]. Nesse contexto, a sua inobservância, além de potencialmente macular, ou mesmo romper, a relação fiduciária mantida entre os dois polos dessa relação, pode configurar inadimplemento contratual do administrador e/ou gestor de carteira perante os cotistas.

Condomínio de natureza especial

Já o segundo ponto de nota no acórdão que julgou o REsp 2139747/SP — qual seja, o exame da relação entre cotistas e prestadores de serviços essenciais a partir da natureza jurídica do fundo de investimento — é enfrentado preponderantemente pelo voto-vista do ministro Marco Aurélio Bellizze.

Ali, após repisar a concepção do instituto como condomínio de natureza especial, nos termos hoje fixados no artigo 1.368-C, caput do Código Civil, o ministro delineia três relevantes características oriundas dessa peculiaridade estrutural dos fundos de investimento, a saber:

(1) tratar-se o fundo de investimento de um ente despersonalizado;

(2) cujo patrimônio, embora não ostente o fundo personalidade jurídica, goza de autonomia, inclusive com a possibilidade de ter contratadas obrigações em seu nome; e

(3) que, justamente por não se tratar de ente personalizado, vincula na forma de uma relação jurídica direta os seus cotistas, de um lado, e o seu administrador e gestor de carteira, do outro.

Nesse aspecto de sua fundamentação, o voto-vista vai ao encontro do já bem conhecido voto de relatoria do ministro Villas Bôas Cueva no julgamento não do caso em análise, mas do Recurso Especial nº 1965982/SP [7].

Neste último, em que se discutia a compatibilidade do instituto da desconsideração da personalidade jurídica com os fundos de investimento, o ministro, em exame pormenorizado da natureza do instituto, ressaltou a sua constituição sob a forma condominial, conforme dispõem as normas pertinentes, ainda que inaplicável a estes o conjunto de normas regentes dos condomínios em geral; a sua ausência de personalidade jurídica; e sem prejuízo disso, bem como de as suas atividades serem desempenhadas por seu administrador e seu gestor, a possibilidade de os fundos de investimento serem titulares de direitos e deveres tanto em suas relações internas quanto externas.

Vínculo de natureza contratual

Por fim, o terceiro ponto de nota consiste no reconhecimento e ênfase, tanto pelo voto relator do ministro Villas Bôas Cueva como pelo voto-vista do ministro Bellize, da relação jurídica mantida entre cotistas e prestadores de serviços essenciais ao fundo de investimento como um vínculo de natureza contratual — conducente à conclusão de que o prazo prescricional incidente sobre as pretensões indenizatórias dos primeiros contra os segundos é o decenal (Código Civil, artigo 205), de aplicabilidade reconhecida aos pleitos indenizatórios decorrentes do inadimplemento de contrato.

Como se constata, o entendimento fixado pela 3ª Turma no recurso em confirma a aplicabilidade da prescrição decenal ao caso. Sua fundamentação específica à disciplina dos fundos de investimento, contudo, revela que a sua relevância transcende o estrito debate atinente à prescrição.

Com efeito, o posicionamento da Corte tanto detalha como confirma, em solo jurisprudencial, elementos da disciplina dos fundos de investimento ainda hoje objeto de controvérsia na literatura especializada. Repisa, por exemplo, a natureza jurídica do instituto no mesmo sentido que o fixado na disciplina legal genérica (Código Civil, artigo 1.368-C) e específica (e.g., Lei nº 8.668/93, artigos 1º e 2º), na regulação da CVM (Resolução CVM 175, artigo 4º) e por parte relevante da doutrina [8]. Assim, auxilia na sedimentação da segurança jurídica tão cara ao desenvolvimento desse significativo segmento do mercado de capitais brasileiro em um contexto que, mesmo hoje em dia, é palco de relevantes discussões entre doutrinadores [9].

Parâmetro para jurisprudência de tribunais brasileiros

O julgamento do REsp 2139747/SP serve também como um norte adicional à jurisprudência dos tribunais brasileiros — judiciais e arbitrais — a respeito das características ínsitas à peculiar relação jurídica existente entre os cotistas do fundo de investimento, de um lado, e, do outro, o administrador e o gestor de carteira encarregados de, respectivamente, manter a sua estrutura operacional e desenvolver as atividades de análise e alocação de recursos conforme a política de investimento consignada no regulamento.

Particularmente, percebe-se como salutar a confirmação da existência de relação jurídica entre titulares de cotas e prestadores de serviços essenciais como vínculo contratual direto, defendida pela melhor doutrina [10] — e que, espera-se, há de gerar efeitos positivos na interpretação das normas aplicáveis aos fundos de investimento não só no contexto da aplicação de prazos prescricionais, mas também em outras áreas, como o exame dos direitos e deveres atribuídos de modo geral a essas espécies de agentes e o regime de responsabilidade civil por eventuais perdas e danos causados por uns contra os outros.

Em vias de conclusão, o julgamento do REsp 2.139.747/SP pela 3ª Turma do STJ demonstra amadurecimento da disciplina jurídica dos fundos de investimento no ordenamento brasileiro, um passo bastante relevante para jurisprudência e doutrina especializadas no tema, o segmento econômico como um todo e, em última instância, o próprio mercado de valores mobiliários brasileiro.

________________________________________

[1] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 2.139.747/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/8/2024, DJe de 30/8/2024.

[2] A natureza contratual do regulamento do fundo é reconhecida em YAZBEK, Otávio. A Lei nº 13.874*2019 e os fundos de investimento. In: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (coords.). Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 564. Ainda, por CHALHUB, Melhim Namen. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 336.

[3] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EREsp n. 1.281.594/SP, relator Ministro Benedito Gonçalves, relator para acórdão Ministro Felix Fischer, Corte Especial, julgado em 15/5/2019, DJe de 23/5/2019.

[4] Resolução CVM 175, artigo 7º.

[5] Resolução CVM 175, artigo 50, caput.

[6] E, anteriormente ao novo marco regulatório, no artigo 92, inciso I da Instrução CVM nº 555, de 17 de dezembro de 2014 — hoje revogada, mas vigente e aplicável aos fatos discutidos no âmbito do REsp 2139747/SP.

[7] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 1.965.982/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 8/4/2022. Mais recentemente, AgInt no AREsp n. 2.427.557/RS, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 19/3/2024, DJe de 22/3/2024. Ainda, AgInt no AREsp n. 1.972.912/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 24/6/2024, DJe de 26/6/2024.

[8] Por exemplo, COSTA, Cláudia Gruppi; SILVA, Giovanna Queiroz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. O art. 159 da Lei das S/A não se aplica às ações indenizatórias contra administrador e gestor de fundo de investimento. In: HANSZMANN, Felipe; HERMETO, Lucas (Org.). Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais V – Edição Especial – Fundos de Investimento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 621. Ainda, EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariadna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de capitais — regime jurídico. 2ª ed. revisada e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 78-79.

[9] O debate quanto às diferentes acepções da natureza jurídica dos fundos de investimento é bem sintetizado em DI BIASE, Nicholas Furlan. A responsabilidade civil do administrador e do gestor por danos ao fundo de investimento. São Paulo: Quartier Latin, 2023, pp. 43-48.

[10] OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento. In: HANSZMANN, Felipe; HERMETO, Lucas (Org.). Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais V – Edição Especial – Fundos de Investimento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 21.

Fonte: CONJUR

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