Por Gilmara Santos — De São Paulo
Uma mudança nas regras tributárias americanas pode gerar aumento na carga tributária de negócios entre o Brasil e os Estados Unidos. Desde o início de janeiro, os americanos aumentaram as exigências para o aproveitamento de créditos tributários de outros países, o que afeta principalmente aqueles que não têm tratado para evitar a dupla tributação, como o Brasil.
A TD 9959, uma espécie de instrução normativa do Departamento do Tesouro americano, foi aprovada no fim de dezembro. A norma afeta a compensação que havia entre os 15% de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) que incide nas remessas para o exterior e o imposto de renda que as empresas americanas pagam nos EUA, de 21%.
De acordo com as novas regras, só será permitido o aproveitamento de crédito de tributo pago em outros países que tiverem legislação similar a dos Estados Unidos. A advogada Ana Cláudia Utumi, sócia do escritório Utumi Advogados, explica que a legislação brasileira é diferente da americana por não deixar claro o que é “fonte de produção da renda brasileira” para a incidência do IR na fonte.
“Embora os dois países não tenham um tratado para evitar a dupla tributação internacional, até então, permitia-se que o Imposto de Renda Retido na Fonte pago na remessa internacional por fonte situada no Brasil fosse usado como crédito pelo recebedor residente nos EUA”, diz o advogado Antonio Moreno, do escritório ASBZ Advogados.
Com as mudanças, desde janeiro pode ocorrer a bitributação na remessa de companhias brasileiras para empresas nos Estados Unidos, já que as firmas terão que recolher o IR na fonte aqui no Brasil e não poderão mais compensar esses valores nos EUA.
“Na prática, a medida aumenta o custo da empresa americana em fazer negócio com a brasileira e reduz a atratividade de fazer negócio no Brasil, o que é bastante ruim”, afirma a tributarista Ana Cláudia Utumi.
O principal aspecto da mudança na legislação americana é a inserção de uma nova condição para o Foreign Tax Credit (FTC), chamada nexo jurisdicional, de acordo com o advogado José Rubens Scharlack, sócio do escritório Scharlack Advogados e Scharlack PLLC. “Basicamente demanda que o imposto pago no país de fonte [no caso, o Brasil] decorra de efetivas atividades, fontes ou propriedades situadas no país de fonte, de acordo com princípios tributários internacionalmente aceitos”, diz.
Sem o direito a usar os créditos, os contribuintes nos Estados Unidos acabarão recolhendo um montante maior a título de imposto de renda, explica Luis Guilherme Gonçalves, da consultoria tributária BT7 Partners.
Já para os contribuintes no Brasil ficará mais caro importar serviços e tecnologia dos EUA. “Vale ressaltar que essas transações se dão, em grande medida, entre empresas do mesmo grupo econômico”, afirma Antonio Moreno. “Ou seja, a operação brasileira de empresas americanas fica menos eficiente e o mercado nacional menos atraente.”
O imposto de renda pago nos EUA era usado como crédito para abater do imposto devido no Brasil. “Não está totalmente claro se assim permanecerá, já que, ainda que exista ato formal da Receita Federal permitindo o crédito [Ato Declaratório SRF nº 28/2000], fato é que está em xeque a sua própria condição de existência: a reciprocidade de tratamento fiscal”, diz Moreno.
A regulamentação americana colocou uma única salvaguarda: a existência de acordo para evitar bitributação. “China e Índia têm. Talvez a única economia relevante que não tem esse tipo de acordo com os EUA é a brasileira”, afirma Gustavo Carmona, sócio-líder de tributação internacional da EY.
Para haver um acordo contra a bitributação, contudo, o processo é complexo. Segundo Carmona, depende de uma ampla negociação, envolvendo a Câmara, o Senado, o presidente da República e o próprio Senado americano.
Do ponto de vista das regras de preço de transferência, a mudança impõe que os Estados Unidos não vão mais aceitar ajuste de preço que não esteja alinhado com os princípios da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esse é o caso das normas brasileiras.
As regras de preço de transferência trazem cálculos para a determinação dos valores de mercadorias importadas ou exportadas entre empresas do mesmo grupo, no Brasil e no exterior. O objetivo é evitar a evasão fiscal.
Para Carmona, uma alteração nessas regras seria algo mais viável para o Brasil tentar manter seu direito a créditos nas operações com os Estados Unidos. “Quanto a preço de transferência, uma mudança das regras depende só do Brasil”, afirma. “Existe um documento conjunto da OCDE com a Receita Federal, de 2019, falando do assunto. Teremos uma movimentação nisso?”
Procurada pelo Valor, a Receita Federal informou que não iria se manifestar a respeito, porque ainda analisa a questão.
Fonte: Valor Econômico